QUESTÃO NUCLEAR
Itamaraty e Defesa temem vazamento de plano nuclear
Ministérios articulam manutenção de sigilo eterno para papéis ultrassecretos
Exercícios militares com países vizinhos e possíveis atos ilegais na definição de fronteiras também preocupam
ELIANE CANTANHÊDE
COLUNISTA DA FOLHA
Um dos principais temores do Itamaraty e da Defesa, que capitaneiam no Executivo o movimento a favor do sigilo eterno de determinados documentos de governo, é com o vazamento de detalhes técnicos e ultrassecretos sobre o programa nuclear brasileiro.
Eles também alegam que é importante impedir a divulgação e a abertura ao público de dois outros grupos de documentos: os referentes aos exercícios militares com simulação de guerra contra os vizinhos e os que relatam práticas ilegais e até imorais do país na definição das fronteiras, especialmente na compra do Acre à Bolívia.
Os ministérios deram pareceres a favor de manter o sigilo eterno para casos específicos, mas ressalvam que não são irredutíveis e que cabe à presidente Dilma decidir.
PROJETO INICIAL
Para o ministro Nelson Jobim (Defesa), o ideal seria que o Senado recompusesse o texto original do governo Lula, que reduzia o sigilo dos papéis ultrassecretos de 30 para 25 anos, com renovações indefinidas. A Câmara passou para uma única prorrogação, limitando a 50 anos o prazo máximo de sigilo.
Dilma, que na elaboração do projeto defendia o fim do sigilo eterno, recuou. Agora, compartilha a opinião dos ex-presidentes José Sarney e Fernando Collor, contrários à abertura total.
Conforme a Folha apurou, militares e diplomatas defendem manter sempre como ultrassecretos todos os dados, estudos e métodos usados para desenvolver centrífugas e a tecnologia nuclear.
Tanto que não dá acesso a eles nem mesmo para a Argentina, com quem tem um acordo bilateral de transparência nessa área.
Em relação às simulações de guerra, há duas questões envolvidas: a de segurança, para não expor as estratégias militares brasileiras, e o constrangimento que a divulgação pode causar.
No treino, as três Forças Armadas definem um teatro de guerra, com tropas "do Brasil" atacando "inimigas".
No Itamaraty, os interesses são a Guerra do Paraguai (1864-70), quando a população masculina paraguaia foi praticamente dizimada, e principalmente a compra do Acre à Bolívia (1903).
Enquanto a questão com o Paraguai é explorada por historiadores, a compra do Acre poderia expor o Brasil internacionalmente sob dois aspectos: afetar a imagem do Barão do Rio Branco, o ícone das Relações Exteriores, e até gerar questionamentos jurídicos sobre as fronteiras.
Quem conhece a papelada diz que há documentos do barão oferecendo propina ao governo da Bolívia na época.
Para especialistas, história não será reescrita
Documentos sobre Guerra do Paraguai, por exemplo, já podem ser consultados no Rio
CLAUDIA ANTUNES - DO RIO
FERNANDA ODILLA - DE BRASÍLIA
Toda a documentação diplomática de 1808 a 1960, incluindo papéis classificados como secretos e ultrassecretos, pode ser consultada por pesquisadores no Arquivo Histórico do Itamaraty no Rio, afirma o ministério.
Isso inclui os documentos sobre a Guerra do Paraguai (1864-1870) e as negociações pela posse do Acre -citados por senadores para defender a possibilidade de sigilo eterno para o material.
A Folha foi ao arquivo e ouviu de funcionários que não há nada sob sigilo.
A pesquisa está temporariamente suspensa para uma reforma nas instalações do século 19, que guardam 6 milhões de documentos. No ano passado, houve 109 autorizações de consulta.
O arquivo foi aberto em 1992, por uma portaria do então chanceler Celso Lafer baseada numa lei de 1991 que não previa o sigilo eterno.
Lafer não acredita que haja ali papeis relevantes sobre Paraguai e fronteiras que não tenham sido consultados.
"Não sei o que teria levado o presidente Sarney e o presidente Collor a fazer essas declarações", disse.
Historiadores habituados a consultar arquivos diplomáticos ouvidos pela Folha não descartam a existência de documentos inéditos. Mas não acreditam em algo capaz de reescrever a história.
"Me parece que o temor pessoal é um dos aspectos mais centrais. A preocupação de Collor e Sarney é com o período mais atual", diz Pio Penna Filho, da UnB (Universidade de Brasília).
Embora o Itamaraty declare o material até 1960 aberto, o historiador afirma que não há transparência na concessão de acesso.
Francisco Doratioto (UnB) diz que os segredos da Guerra do Paraguai são "lenda urbana". No caso da negociação entre Brasil e Bolívia pelo território ocupado pelo Acre, ele minimiza riscos de divulgação dos papéis.
"Algumas figuras, tanto do lado brasileiro quanto do boliviano, talvez possam sair menores, afirma.
O historiador José Murilo de Carvalho, que participou de uma comissão para examinar a liberação de documentos no governo FHC, diz que o grupo se convenceu de que a abertura não traria risco em relação às fronteiras e à Guerra do Paraguai. "Países maduros não têm medo de enfrentar o passado."
CHARGE
DOCUMENTOS SIGILOSOS
Dilma afirma que mudou de opinião
A presidente defendeu o sigilo de arquivos ultrassecretos para preservar as "relações internacionais" . Ela afirmou que "era" favorável à abertura, mas disse ter mudado de posição.
TENDÊNCIAS/DEBATES
Deve ser abolido o sigilo eterno de documentos oficiais do governo?
SIM
Ocultação gera sentimento de desconfiança
FABIANO ANGÉLICO
O projeto de lei de acesso a informações públicas vem suscitando debates a respeito dos documentos classificados. Pelo PLC nº 41, o prazo máximo de restrição de acesso a documentos ultrassecretos será de 50 anos. Tal regra se coaduna com as melhores leis de acesso a informações públicas, que estabelecem a abertura como regra e o sigilo como exceção temporária.
Afinal, a ocultação de documentos por tempo indeterminado gera um sentimento de desconfiança e fomenta a cultura do boato e das teorias da conspiração. A abertura, ao revés, resgata a confiança dos cidadãos nas instituições.
Para além de encerrar essa figura inconstitucional do sigilo eterno, uma lei geral de acesso é imprescindível para o controle social e, portanto, para a democracia.
Na clássica distinção de Guillermo O'Donnell, temos a "accountability" horizontal (um órgão público presta contas a outro) e a "accountability" social, que significa, grosso modo, um sistema no qual a sociedade cobra e os governantes prestam contas. Ora, sem transparência não há "accountability" social adequada.
Além disso, a ampla disponibilização de dados faz com que a sociedade ative também a "accountability" horizontal -não raro Ministérios Públicos, por exemplo, abrem processos contra agentes de outros Poderes a partir de revelações da imprensa ou de ONGs.
Mais de 90 países já dispõem de leis de acesso. O Brasil é a única grande democracia ocidental a prescindir de uma lei geral de acesso a informações públicas. De certa forma, a demora em aprovarmos a lei pode ter sido favorável.
O texto que está no Senado tem algumas inovações, como a obrigação de os governos publicarem documentos na internet em formatos eletrônicos abertos, passíveis de serem lidos por máquinas.
Incorporadas as inovações, chegou a hora de o Brasil aprovar essa lei, que regulamenta um direito previsto na Constituição (artigos 5º e 37). A cada dia sem essa regulamentação, a falta de transparência traz um novo prejuízo à sociedade.
Caso o projeto de lei de acesso já tivesse sido aprovado, a Folha não precisaria ir à Justiça para tentar obter a lista dos superpassaportes (reportagem de 2 de março de 2011) e não teria noticiado o caso de venda dos dados públicos sobre segurança em São Paulo (dia 1º de março de 2011).
Caso a lei estivesse em vigor, pesquisadores em administração pública, colegas meus da FGV-SP, teriam conseguido dados sobre consumo de combustível com a Agencia Nacional do Petróleo ou informações a respeito de contratos entre empresas privadas de segurança e a Caixa Econômica Federal.
Uma lei geral de acesso, portanto, é muito mais do que ferramenta essencial a historiadores. É um garantidor de um melhor combate à corrupção e aos privilégios.
É garantidor de um debate mais qualificado e informado a respeito de políticas públicas. E é garantidor do direito à verdade e da promoção dos direitos humanos. Daí a importância de o projeto de lei ser aprovado da forma como está.
Há cinco anos, o ex-presidente Lula comprometeu-se, em entrevista a esta Folha, a fazer aprovar uma lei de acesso. Não cumpriu.
A presidente Dilma, que lutou contra a ditadura, amiga dos porões e de seus segredos, tem agora a oportunidade de se diferenciar de seu antecessor e de fazer avançar a democracia brasileira.
FABIANO ANGÉLICO, 35, é jornalista e mestrando em administração pública e governo na Fundação Getulio Vargas de São Paulo, especialista em transparência, "accountability" e combate à corrupção pelo Centro de Direitos Humanos da Universidade do Chile. Foi coordenador de projetos da ONG Transparência Brasil de 2007 a 2010.
NÃO
Acesso à informação é questão de Estado
FERNANDO COLLOR DE MELLO
O projeto de lei da Câmara nº 41/ 10 envolve questões do maior interesse nacional. Identifiquei aspectos na versão da Câmara que geram impacto danoso à administração pública e à segurança do Estado e da sociedade brasileira.
Afinal, trata-se de informações e de documentos ligados à trajetória, à atuação e às estratégias da diplomacia e dos serviços de inteligência do país, bem como assuntos de pesquisa e desenvolvimento de tecnologias sensíveis e tratados internacionais com vinculação ao sigilo de informações.
Destaco algumas alterações que uma lei dessa magnitude requer:
1 - Resgatar a possibilidade de que alguns documentos, cuja divulgação ameace a segurança do Estado e da sociedade, tenham seu sigilo prorrogado por mais de uma vez. Nem as mais tradicionais e liberais democracias do mundo permitem a completa divulgação da totalidade dos documentos públicos, principalmente daqueles relacionados à segurança do Estado;
2 - Evitar verdadeira oficialização do WikiLeaks. Ou seja, retirar a obrigatoriedade de divulgação de informações na rede sem devida e prévia publicação no Diário Oficial;
3 - Resgatar a hipótese do caráter confidencial de determinados documentos e informações, para dar mais flexibilidade ao agente público na classificação e evitar problemas com aqueles existentes e assim já denominados. Há de se considerar também os acordos internacionais em que consta essa classificação e cuja alteração demandaria novas tratativas;
4 - Inverter a lógica da classificação da natureza das informações. O seu conteúdo é o elemento decisivo para determinar o grau de sigilo, e não o nível hierárquico do responsável pela classificação;
5 - O texto original, ao criar a Comissão Mista de Reavaliação de Informações, não é preciso quanto à composição. Sua competência deve ser a de uma instância consultiva, e não decisória, de modo a evitar que a própria presidenta da República torne-se subordinada a ela;
6 - Manter secretas as informações referentes ao presidente da República pelo prazo de 15 anos, tornando desnecessário vincular o acesso às informações de seu governo ao término do mandato. Nesse ponto, cabe esclarecer: todas as informações relativas ao meu governo já estão inteiramente disponíveis. Diferentemente do que se tem divulgado, não há conotação pessoal nos meus comentários.
Longe disso, não é questão pessoal ou de governo, é questão de Estado.
Essas são algumas das sugestões que considero importantes e que levei pessoalmente, em 4 de maio, ao então ministro Palocci (quando repassamos o projeto ponto por ponto, com o compromisso dele de reunir nossas assessorias para analisar as sugestões); aos membros da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional, em 5 de maio, na primeira parte de sua reunião secreta; ao ministro Luiz Sérgio e, mais recentemente, à própria presidenta Dilma Rousseff, que se mostrou sensibilizada e disposta a encontrar a melhor solução.
Quando chefe da Casa Civil, o projeto de lei nº 5.228 foi por ela subscrito e enviado ao Congresso em 15/5/2009 pelo presidente Lula, por intermédio da então ministra, que entregou a proposta em mãos ao presidente da Câmara, deputado Michel Temer.
Há poucos dias, tive o primeiro contato com a ministra Ideli Salvatti, que já está empenhada na solução para a matéria, com preferência para o texto do projeto original do Executivo, que é a versão oficial do governo. Concordo com essa opção, já que, diferentemente das emendas da Câmara, o texto do presidente Lula atende à lógica e à defesa do Estado brasileiro.
Com pequenas adaptações de redação e aperfeiçoamentos pontuais, chegaremos a uma lei moderna e realista, podendo ainda ser aprimorada por emendas parlamentares e pelo debate que ensejará no momento oportuno.
FERNANDO COLLOR DE MELLO é senador pelo PTB-AL e preside a Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado. Foi presidente da República (1990-1992).
COPA DE 2014
Governo promete divulgar todos os gastos com a Copa
Ministro tenta desfazer dúvidas provocadas por ofício ao Tribunal de Contas
Despesas com novas obras e serviços serão divulgadas após definição de contratos, afirma Orlando Silva
JOSÉ ERNESTO CREDENDIO
DIMMI AMORA - DE BRASÍLIA
O governo prometeu ontem ser mais transparente na divulgação dos gastos com a organização da e da Olimpíada de 2016.
O ministro do Esporte, Orlando Silva, prometeu publicar informações sobre todos os projetos associados aos dois eventos esportivos, inclusive os que ainda não foram contratados e o ministério ameaçava não incluir em suas prestações de contas.
Em ofício enviado em fevereiro ao TCU (Tribunal de Contas da União), o ministério avisara que a divulgação de novas despesas com as áreas de segurança, telecomunicações e saúde seria feita de acordo com a "conveniência do Poder Executivo", como a Folha mostrou.
Silva e dois assessores do ministério assinaram o ofício. O ministro disse ontem que o documento foi mal interpretado e que o ministério nunca se negou a prestar informações ao TCU. Mas não há no ofício nenhum compromisso com a divulgação completa das informações.
As dúvidas sobre a prestação de contas desses gastos surgiram no mesmo momento em que o governo começou a ser criticado por causa das mudanças que deseja fazer na contratação de obras e serviços para os dois eventos.
Projeto aprovado pela Câmara nesta semana permite que o governo mantenha em sigilo os orçamentos em que estima seus gastos antes da contratação dos projetos.
O governo diz que a mudança é necessária para evitar conluio entre as empresas interessadas nos contratos, mas críticos da iniciativa acham que ela reduzirá a transparência das licitações públicas e não ajudará a inibir tentativas de fraude.
Segundo Silva, os gastos do governo serão divulgados no Portal da Transparência na internet depois que os projetos forem contratados e à medida que pagamentos às empresas forem feitos.
O ministro disse ontem que falou com a presidente Dilma Rousseff sobre o assunto. "É ordem explícita da presidenta [...] que todo processo de contratação para a Copa e a Olimpíada deve ter máxima transparência".
Dilma defende novo modelo para licitações
DE RIBEIRÃO PRETO (SP)
DE SÃO PAULO
A presidente Dilma Rousseff defendeu ontem o novo modelo proposto para a contratação de obras e serviços associados à Copa de 2014 e à Olimpíada de 2016.
O governo quer manter em sigilo os orçamentos preliminares que usa para estimar os custos dos projetos antes de contratá-los e incluiu um dispositivo com esse objetivo na medida provisória que muda regras da Lei de Licitações para os dois eventos.
O texto da medida provisória foi aprovado na quarta-feira na Câmara dos Deputados, mas ainda falta votar mudanças propostas para alguns trechos. Depois, a medida ainda precisará ser examinada pelo Senado.
Segundo Dilma, o assunto foi amplamente debatido com o TCU (Tribunal de Contas da União) e a medida obedece às "melhores práticas".
Pela lei atual, o governo estima o custo de cada obra antes que grupos interessados no empreendimento façam suas propostas.
O novo texto estabelece que apenas órgãos de controle como o TCU terão acesso a essas estimativas, se o governo achar conveniente, e diz que eles não poderão divulgar os orçamentos.
O governo diz que o sigilo ajuda a baratear as obras e impede que as empresas tentem fraudar as licitações combinando seus preços. Dilma disse que as estimativas do governo serão divulgadas após a conclusão das licitações, mas o texto da medida provisória permite que elas continuem em segredo.
"Não há, da parte do governo, nenhum interesse de ocultar", disse Dilma. "Não se oculta [o custo da obra] da sociedade, depois que ocorreu o lance [proposta], e não se oculta, antes do lance, dos órgãos de controle".
Especialistas divergem quanto à legalidade da medida. Floriano Azevedo Marques, da USP, diz que a regra pode levar a favorecimento de empresas que conseguissem acesso aos orçamentos sigilosos: "É um risco muito maior que a desculpa do governo de que a regra irá evitar conluios".
Já o professor da Direito GV de São Paulo Carlos Ari Sundfeld diz que o Banco Mundial já recomendou a tomadores de empréstimos que adotem esse tipo de regra: "O sigilo da MP é apenas temporário, até o momento do julgamento de propostas das licitações".
(ARARIPE CASTILHO e FLÁVIO FERREIRA)
Entidades criticam falta de transparência
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
Órgãos de controle e entidades de classe criticaram o governo pela falta de transparência com as mudanças propostas na Lei de Licitações para as obras da Copa de 2014 e da Olimpíada de 2016. O ministro Jorge Hage, da CGU (Controladoria-Geral da República), afirmou que a presidente Dilma Rousseff jamais autorizaria que partes dos gastos não fossem públicas.
Hage criticou a lentidão do Ministério do Esporte em repassar dados para o Portal de Transparência. Já o TCU afirma em nota que é "essencial a ampla disponibilização à sociedade da totalidade dos custos das obras, de modo a assegurar a transparência, a prestação de contas dos gastos públicos e permitir o controle social".
A Associação Nacional dos Procuradores da República e o Instituto Brasileiro de Auditoria de Obras Públicas também repudiaram a manobra do governo para tornar os orçamentos sigilosos. O presidente da Associação dos Juízes Federais, Gabriel Wedy, ressalva que a divulgação e a transparência dos gastos públicos são essenciais em uma sociedade democrática e em um regime republicano. E o presidente da OAB do Rio, Wadih Damous, classificou a medida de "inaceitável e antidemocrática".
(MARIA CLARA CABRA E DIMMI AMORA)
Sigilo concentra dados valiosos com poucos
DE BRASÍLIA
Ao mesmo tempo em que, segundo o governo, combate cartéis, a manutenção do sigilo de orçamentos prévios para licitações concentra na mão de um grupo de burocratas informações de alto valor. Hoje, o governo insere nos editais os valores que considera justos.
Na formação desses orçamentos prévios, o governo usa as maiores bases de dados de coleta de preços no país. Organismos como a Fundação Getulio Vargas e a Caixa Econômica são responsáveis pelas tabelas oficiais de custos. É com base nessas tabelas que o governo estima qual é o valor justo ou máximo a pagar por um projeto. Esse trabalho resulta nas estimativas oficiais, que serão inseridas nos editais de licitações, aos quais qualquer pessoa pode ter acesso via internet.
Com o sigilo, só uma parcela de servidores terá esses dados. A empresa que oferecer o valor mais próximo terá maior chance de vencer a licitação. O ministro Jorge Hage, da Controladoria-Geral da República, afirmou que Dilma jamais autorizaria que partes dos gastos não fossem públicas.
Já o Tribunal de Contas da União afirma que é "essencial a ampla disponibilização à sociedade da totalidade dos custos das obras, de modo a assegurar a transparência, a prestação de contas dos gastos públicos e permitir o controle social".
PAINEL DO LEITOR
Sigilos
Sobre o sigilo eterno, o procurador-geral da República, Roberto Gurgel, disse que qualquer barreira contra o direito ao acesso a documentos públicos é inconstitucional. Se é assim, por que então ele arquivou o pedido de investigação sobre o ex-ministro Palocci? Afinal, ele não era funcionário público quando ganhou aquela bolada de R$ 20 milhões? Por que dois pesos e duas medidas?
SÉRGIO APARECIDO NARDELLI (São Paulo, SP)
Não bastasse o sigilo eterno para documentos do governo, temos agora o sigilo relativo aos orçamentos da Copa de 2014 e da Olimpíada de 2016. Essa medida provisória do sigilo orçamentário representa o "AI-5" da Dilma.
Isso porque a ditadura se escancarou. Já não vivemos apenas o regime da autocensura decorrente do controle da imprensa por meio de verbas publicitárias, que é pior e mais perverso do que a censura explícita.
Esse controle não foi suficiente, por isso vem a lei draconiana, que é mais abrangente e não deixa brechas. Além disso, as entidades da sociedade civil encontram-se totalmente cooptadas por meio de verbas públicas assistencialistas.
Não se vê nenhum movimento organizado de contestação ao sistema social injusto e excludente nem ao sistema político degenerado e corrupto.
JOSÉ LOIOLA CARNEIRO (São Paulo, SP)
FERNANDO DE BARROS E SILVA
Artes nacionais
SÃO PAULO - Dilma Rousseff "lamentava" ontem que o Regime Diferenciado de Contratações (RDC) para obras da Copa e da Olimpíada tenha sido tão "mal interpretado". Puxa, que chato. Ela se referia, especificamente, ao ponto da medida aprovada pela Câmara que desobriga o governo de informar à sociedade quanto pretende gastar com cada obra ou serviço. Exatamente o que o procurador-geral da República havia qualificado na véspera como "escandalosamente absurdo".
Essa modalidade de orçamento sigiloso, segundo Dilma, é usada pela União Europeia para "evitar que o licitante, que está fazendo a oferta, utilize a prática de elevação de preços e de formação de cartel".
O que Dilma diz, com outras palavras, é que a Lei de Licitações, tal como existe hoje no país, favorece os conluios e a roubalheira. No escurinho, segundo a sua lógica, aumentaria a chance de serem todos mais honestos. E a do papagaio?
Se o RDC é tão republicano, por que a presidente não o incluiu em seu plano de governo? E por que não validá-lo para todas as obras públicas, além da Copa? Silêncio.
Assim como o Brasil não é a Suíça ou a Alemanha, o RDC nada tem de moralizador. Ele é o que parece ser: a privatização do interesse público, uma gambiarra legal que, na prática, institucionaliza a gangsterização dos negócios da Copa.
Essa já era uma bola cantada. Diante da falta de planejamento e do pânico do naufrágio iminente, Dilma apela à emergência: afrouxa as licitações e oferece uma espécie de cheque em branco aos aventureiros atrás do biombo. O país vai pagar pelo regime diferenciado da mãe do PAC. Mas tudo bem, a gente não vai saber quanto vai custar.
VALDO CRUZ
Politicagem e inoperância
BRASÍLIA - Quando o Brasil foi escolhido sede da Copa de 2014 pela Fifa, tantas promessas foram feitas que imaginei: taí uma grande oportunidade para nosso país subir de patamar e mostrar que mudou. Lá se vão mais de três anos e meio desde o anúncio e qual é a realidade? Obras atrasadas, promessas de transparência de gastos sob suspeita e a sensação de que será um corre-corre danado para garantir tudo pronto daqui a três anos. Cenário perfeito para os espertos de plantão aproveitarem a confusão e tentarem ganhar tubos de dinheiro. Afinal, autoridades estão pedindo "liberalidades" na contratação de obras diante do "risco" de o país passar por um vexame.
O fato é que o Brasil, mais uma vez, mostra estar longe de ser um país com padrões do mundo desenvolvido. Primeiro, foi a politicagem que reinou na definição das cidades-sede da Copa de 2014. A Fifa, que não é nenhuma boa referência no momento atual, se contentava com oito sedes. Mas o ex-presidente Lula queria mais, pois precisava contemplar aliados loucos para ter um joguinho da Copa na sua cidade.
A disputa política consumiu mais de um ano e meio até que fosse batido o martelo das doze sedes. Resultado: atraso na definição de obras e geração de alguns elefantes brancos. Para o Tribunal de Contas, pelo menos quatro cidades não têm público para justificar a construção de grandes estádios de futebol. Segundo, o governo petista, de Lula e agora de Dilma, sabia desde 2007, quando o Brasil foi escolhido sede da Copa, que precisávamos expandir, por exemplo, a capacidade de nossos aeroportos.
Pois bem, o governo Lula foi postergando decisões e acabou terminando seu mandato sem definir nem o modelo dessas obras quanto menos seu andamento. Isso, sim, um verdadeiro vexame. Em outras palavras, a politicagem e a inoperância nos conduziram ao cenário atual, de elevado risco de desvios no ar.
CESAR MAIA
Política externa
Parecia que a presidente Dilma Rousseff ia alterar a política externa populista do governo Lula. Declarações iniciais sobre direitos humanos, no caso de uma iraniana condenada a pena cruel, deu esperanças. Contudo eram só fogos de artifício. O ministro das Relações Exteriores, Antonio Patriota, pelo tempo que viveu e serviu nos EUA, sinalizava moderação. Pura ilusão. Apenas sinalizava. Em pouco tempo, mostrou algo muito diferente.
Na decisão do Conselho de Segurança da ONU sobre a Líbia, o Brasil se absteve, com a Rússia e a China. Um aval ao desequilibrado ditador Gaddafi. Depois veio a pressão sobre o Congresso para rever o acordo de Itaipu, criando um grave precedente. O explícito chavista Marco Aurélio Garcia, assessor internacional da Presidência, justificou a revisão como uma ação "geopolítica". Melhor seria doar esses US$ 300 milhões da revisão do Tratado de Itaipu.
A divulgação do conteúdo do laptop do comandante narcoguerrilheiro Raúl Reyes, evidenciando os espaços livres para as Farc no Brasil, não obteve do governo Dilma nem uma linha de preocupação e indicação investigativa. A ostensiva atuação do governo, e do PT, na eleição peruana, suavizando a imagem do candidato chavista Ollanta Humala e dando-lhe apoio diplomático (nem tão discreto), foi na mesma direção. Dilma não quis receber a iraniana Shirin Ebadi, Prêmio Nobel da Paz. A decisão do STF sobre o caso do terrorista assassino Cesare Battisti teve claro envolvimento do governo Dilma, antes e depois, por meio do ministro da Justiça.
Agora, o país enfrenta um constrangimento com os italianos, que fazem parte da formação econômica e cultural do Brasil contemporâneo. Dias atrás, o ministro Patriota afirmou que a proposta de advertência ao governo sírio pela repressão com dezenas de mortos, apresentada ao Conselho de Segurança da ONU, não contava com o apoio do Brasil. Em entrevista na sede da ONU, nos EUA, disse com todas as letras:
"Os ataques aéreos da Otan na Líbia causaram hesitação entre os membros do CS sobre a adoção de ações contra a Síria -país muito central quando se analisa a estabilidade no Oriente Médio. Ainda existe uma preocupação sistêmica sobre a implementação da resolução 1.973 (Líbia). Penso que as preocupações sobre a implementação desta resolução estão influenciando a forma como as delegações olham para outras medidas que podem afetar outros países da região -a Síria em particular.
Continuaremos monitorando a situação de perto antes de adotarmos uma posição sobre esta proposta específica". Em resumo: nada, absolutamente nada, mudou de substancial na política externa além de uma maquiagem inicial, que logo desbotou.
CESAR MAIA escreve aos sábados nesta coluna.
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