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sexta-feira, 17 de junho de 2011

17 de junho 2011 - VALOR ECÔNOMICO


TRANSPORTE AÉREO
Emergentes puxam para cima vendas de aviões

Alberto Komatsu | De São Paulo

A expectativa de crescimento econômico global nos próximos 20 anos, especialmente em mercados emergentes como Ásia e América Latina, faz a Boeing revisar para cima a projeção de demanda do transporte aéreo por aviões entre 2011 e 2030. Ontem, a fabricante americana divulgou que o setor deve comprar 33.500 aviões no período, para passageiros e carga, movimentando US$ 4 trilhões. Em 2010, a previsão era de 30.900 unidades, ou US$ 3,6 trilhões.
A necessidade de aviões mais econômicos, diante do cenário de volatilidade do preço do barril de petróleo, também vai impulsionar a renovação da frota mundial. Atualmente, há no mundo 19.410 aviões em operação. A previsão da Boeing indica que a frota mundial será de 39.530 aeronaves em 2030.
A projeção mostra que a América Latina, onde o Brasil é o maior mercado, vai absorver 2.570 aviões até 2030, o que corresponde a compras de US$ 250 bilhões. Entre as sete regiões pesquisadas pela Boeing, as companhias aéreas latino-americanas responderão pela quarta maior demanda, no período.
A América Latina deverá registrar a segunda maior média de crescimento no tráfego aéreo mundial (número de passageiros transportados) até 2030, ou 6,8% ao ano. O mercado latino só deve ficar atrás da região Ásia-Pacífico, com 7% ao ano. Em terceiro vem a África (5,1%), seguida do Oriente Médio (5%), Europa (4%) e América do Norte (2,3%). A média mundial está projetada em 5,1% por ano.
"A economia da região (América Latina) está projetada para crescer fortemente nos próximos 20 anos, estimulando seu tráfego aéreo a crescer acima da média mundial, mais rapidamente na América do Sul, que deverá ter o sexto maior tráfego doméstico entre as regiões cobertas pelas nossas previsões", informou a Boeing.
O levantamento indica que entre os 33.500 novos aviões que entrarão em operação no mundo, cerca de 70% deverão ser as do tipo corredor único, com duas fileiras de assentos. Em valores, esse tipo de avião responderá por 48% da demanda.
As aeronaves de corredor duplo, como o Boeing 777 e o Airbus A330, com duas fileiras de assentos nas extremidades e uma no centro, deverão responder por 22% das entregas e 43% do movimento de dinheiro. Já as aeronaves de grande porte, como o Boeing 747-8 e o Airbus A380, vão corresponder a 2% das vendas e 7% do investimento total de US$ 4 trilhões.
O especialista em aviação da consultoria Bain & Company, André Castellini, diz que assim como a tendência mundial, o Brasil terá maior demanda por aviões de corredor único nos próximos 20 anos. No entanto, ele diz que também haverá crescimento de demanda por aeronaves de corredor duplo, inclusive no mercado doméstico.
"A TAM, por exemplo, já está usando o Boeing 777 na rota São Paulo-Manaus, nem tanto por uma questão de capacidade de passageiros. Esse tipo de avião é mais indicado para voos acima de quatro horas de duração e com demanda por carga", afirma Castellini.
A TAM informa que, em abril, a TAM Cargo aumentou em 58% a capacidade de transporte de cargas no trecho São Paulo-Manaus. Isso foi possível com a troca de um A330, que pode carregar até 156 toneladas, por um 777, com capacidade para 246 toneladas.


MERCADO BRASILEIRO DE DEFESA
Receita da AEL deve crescer 50% este ano

Virgínia Silveira | Para o Valor, de São José dos Campos

Os novos negócios no mercado brasileiro de defesa e segurança dobraram o faturamento da AEL Sistemas a cada ano desde 2009. Subsidiária da Elbit Systems, empresa privada do setor de defesa de Israel, a AEL prevê crescimento de 50% na receita de 2011, comparado a 2010, quando obteve faturamento de US$ 40 milhões.Considerada um centro de excelência na área de sistemas aviônicos, a fábrica da AEL Sistemas em Porto Alegre (RS) está sendo ampliada para abrigar os projetos contratados nos últimos meses. "Estamos investindo US$ 10 milhões em um novo prédio, mas teremos novas expansões, por conta de outros negócios que estarão sendo incorporados pela empresa", diz o vice-presidente de Operações, Vitor Neves.
Em parceria com a Embraer, a empresa iniciou a modernização de um lote adicional de onze caças F-5, da Força Aérea Brasileira (FAB). O negócio todo está avaliado em US$ 158 milhões e a AEL foi subcontratada pela Embraer para uma parte do projeto: o fornecimento dos sistemas aviônicos (eletrônica de bordo) dos caças. Outra parceria com a Embraer envolve o programa de modernização de 43 jatos de combate AMX da FAB. No começo do mês o Senado aprovou R$ 195 milhões para o AMX.
A AEL assinou dois importantes contratos com a Helibras para modernização dos aviônicos dos helicópteros Esquilo, do Exército, e o fornecimento desses sistemas para os 50 EC-725, que estão sendo produzidos para as Forças Armadas Brasileiras. "O contrato com o Exército inclui 36 helicópteros, mas existe uma frota de mais de 300 Esquilo em operação no Brasil, com potencial para receber esse sistema mais avançado de aviônica." A modernização do painel de instrumentos do helicóptero Esquilo está sendo feita pela AEL em parceria com a francesa Sagem.
Com a Embraer, segundo Neves, a AEL negocia ainda a criação de uma empresa, que terá capital majoritário da fabricante de aviões e será dedicada ao desenvolvimento e produção de vants (veículos aéreos não-tripulados). Em abril, as empresas fecharam acordo para avaliar a exploração conjunta do mercado de vants, simuladores de voo e programas de modernização de aeronaves.
"A nossa expectativa é que até o fim de julho já tenhamos a estrutura da nova empresa definida." A criação da empresa, na opinião de Neves, resultará em uma parceria vantajosa para as duas partes. "Do nosso lado estaremos nos adequando às diretrizes da Estratégia Nacional de Defesa, pois a nova empresa terá capital majoritário brasileiro e para a Embraer será uma oportunidade de compartilhar o know how numa área estratégica que ela ainda não atua."
O executivo acredita que, com a Embraer, a AEL também terá mais força no processo de aquisição futura de vants das Forças Armadas. No ano passado, a AEL venceu uma licitação aberta pela FAB para a compra de dois vants, do modelo Hermes 450, fabricado pela Elbit. Com os dois veículos, a FAB pretende criar uma doutrina de utilização de vants, uma vez que não tem experiência com esse tipo de equipamento.
O plano do Ministério da Defesa é a criação de um projeto de vant nacional, que atenda às necessidades do sistema de defesa brasileiro. A AEL está montando um centro de excelência de vants no Brasil e enviou para Israel um grupo de técnicos brasileiros para participar de um programa de desenvolvimento de tecnologias associadas a vants nas instalações da Elbit.
A negociação com a Embraer, de acordo com o executivo, inclui ainda uma possível participação minoritária da fabricante de aviões no capital da AEL. Atualmente, segundo Neves, a AEL conta com 200 funcionários na fábrica de Porto Alegre, mas este número saltará para 500 num prazo de três anos, por conta dos projetos desenvolvidos pela empresa. A AEL é responsável ainda pela modernização da frota de 54 Bandeirante da FAB. Na área de sistemas aviônicos, a AEL é a única que possui uma linha de fabricação desses sistemas no Brasil.


NOVO JATO
Novo Bombardier em dificuldades

Caroline Van Hasselt e Peter Sanders | The Wall Street Journal, de Montreal

A Bombardier Inc. está sob pressão crescente para conseguir pedidos para seu novo jato CSeries antes da Salão da Aeronáutica de Paris, na semana que vem. Depois de 15 meses sem anunciar pedidos, a empresa, sediada em Montreal, anunciou este mês duas pequenas encomendas, que somam um total de 13 pedidos firmes de jatos e opções para outros 13. O CSeries só tem 5 clientes até agora, com pedidos firmes para 103 jatos e opção para outros 103.
É pouco para um dos projetos mais importantes da empresa. A Bombardier ainda não anunciou um cliente que aceite a primeira entrega da aeronave.
Todos esperavam que a Bombardier anunciasse uma série de pedidos do avião de um só corredor - normalmente para viagens curtas e de média distância - na Feira Internacional de Aviação de Farnborough, na Inglaterra, em julho. Mas nenhum se materializou. Um pedido da companhia aérea Qatar Airways Ltd., do Oriente Médio, foi cancelado depois de uma disputa entre a companhia aérea e a fabricante de turbinas Pratt & Whitney sobre os custos de manutenção.
A Bombardier não quis comentar se serão anunciados pedidos no Salão de Paris. Pessoas a par dos planos da fabricante de aviões dizem que provavelmente ela anunciará um punhado de pedidos, mas todos pequenos.
"Não administramos nossos pedidos de acordo com as feiras de aviação, mas teremos mais pedidos este ano", disse Gary Scott, presidente de aviões comerciais da Bombardier, numa entrevista ao Wall Street Journal no mês passado. "O CSeries vai bem e estamos a caminho de entregá-lo no fim de 2013. Não é que não tenha seus desafios, mas não há nenhum grande obstáculo para nós neste momento."
A Bombardier - terceira maior fabricante de aviões do mundo em vendas, atrás da Boeing Co. e da Airbus, esta controlada pela European Aeronautic Defence & Space Co. - é mais conhecida por seus jatos regionais e aviões turboélice. A empresa aposta o futuro de seu programa de aviões comerciais no CSeries, que recebeu de 50% a 60% das despesas de capital da Bombardier. A empresa calcula o desenvolvimento da aeronave em US$ 2,5 bilhões, a ser compartilhado por fornecedores e governos como o do Canadá e do Reino Unido, onde a Bombardier tem fábricas importantes.
O principal concorrente da Bombardier, a Empresa Brasileira de Aeronáutica SA, mais conhecida como Embraer, de São José dos Campos, SP, já ultrapassou a Bombardier no mercado de jatos regionais, com sua linha de aviões maiores E-Jets.
A Bombardier afirma que os aviões CSeries - que usam um novo projeto feito principalmente de fibras compósitas - prometem manutenção mais barata e consumo menor de combustível que outros aviões no mercado. O CSeries pode acomodar de 110 a 130 passageiros e tem autonomia de no máximo 5.463 quilômetros, suficiente para a maioria das rotas domésticas da Europa, da América do Norte, da China e da Ásia. O jato custa de US$ 55 milhões a US$ 63 milhões cada, a depender do modelo, embora as companhias aéreas costumem negociar descontos no preço de tabela.
Além de buscar o mercado de aviões com menos de 150 passageiros, a Bombardier acredita que o CSeries vai roubar mercado do Boeing 737 e do Airbus A320, os menores jatos de um corredor oferecidos por essas empresas.
Mas as companhias aéreas têm relutado em fazer pedidos do CSeries, enquanto esperam para ver se a Boeing ou a Airbus vão redesenhar seus aviões de um corredor. A alta do combustível também vem adiando os pedidos das companhias aéreas, bem como as lições aprendidas com os repetidos atrasos no desenvolvimento do jato de dois corredores Dreamliner 787, da Boeing. No fundo, as companhias aéreas querem ver o CSeries sair da prancheta e voar antes de se comprometerem a comprá-lo.
John Leahy, diretor operacional para vendas da Airbus, tem atacado de frente o projeto CSeries. Depois de a Airbus ter anunciado ano passado que iria oferecer uma versão atualizada do A320, Leahy disse que o novo design "acaba com o modelo de negócios" para o CSeries.
A Boeing tem sido mais discreta. Num evento com investidores mês passado, executivos da Boeing disseram que a empresa ainda não perdeu nenhum cliente do 737 para a Bombardier. Mas eles reconheceram que o duopólio da Airbus e da Boeing no mercado de jatos de um corredor provavelmente já chegou ao fim.
O CSeries também enfrenta concorrência de fabricantes japoneses, russos e chineses, embora o número de passageiros de seus modelos varie. A Embraer, que ainda não anunciou planos para o sucessor da linha E-Jets, também pode ser um rival difícil.
Com tanta concorrência, "entendo por que as companhias estão em cima do muro", disse Rick Erickson, consultor do setor aéreo de Calgary, no Canadá. "Isso complicou um pouco mais as coisas para a Bombardier."


ACESSO A INFORMAÇÕES PÚBLICAS
Fim do sigilo eterno une oposição à maior parte da base aliada

Raquel Ulhôa | De Brasília

A bancada do PT no Senado, majoritariamente, mantém o apoio ao projeto de lei da Câmara dos Deputados que regula o acesso a informações públicas. E tem emitido sinais ao Palácio do Planalto de que o governo não deve interferir na tramitação. A tendência hoje no Senado é de aprovação. A oposição e a maior parte do bloco governista são favoráveis ao fim do sigilo eterno dos documentos oficiais, como propõe o texto. O PMDB está dividido.
Uma determinação clara da presidente Dilma Rousseff poderia até levar a uma derrubada do projeto, mas teria potencial para gerar nova crise com a base no Congresso. O líder da bancada, Humberto Costa (PE), tem reunião marcada para hoje com a ministra Ideli Salvatti (Relações Institucionais) para tratar do assunto.
"Não acredito em rebelião do PT, nem é meu desejo patrocinar uma. Até porque o projeto tem coisas mais importantes do que o sigilo dos documentos. Mas, se o Planalto não impuser uma posição [contra], a bancada do PT vota majoritariamente a favor do projeto", diz Costa.
Embora Ideli tenha dito ao líder que Dilma quer resgatar a proposta original enviada pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2009, o líder do governo, Romero Jucá (PMDB-RR), não retirou o pedido de urgência para a votação em plenário da versão alterada pela Câmara e aprovada por duas comissões do Senado.
Nas duas comissões - a de Direitos Humanos e a de Ciência e Tecnologia - o projeto foi relatado por petistas: o próprio líder e Walter Pinheiro (BA), respectivamente. Em seus pareceres, ambos mantiveram o texto da Câmara, que acaba com o sigilo eterno. Durante toda a tramitação naquela Casa e, até agora, no Senado, o governo não interferiu e a base aliada entendia que havia concordância do Planalto.
"O governo deve ter opinião, mas este é um momento interno do Senado. Se um ou outro senador discorda do projeto, pode apresentar emendas. E existe outro instrumento: o voto. Direito de espernear, ele tem", disse Pinheiro.
A suposta mudança de posição, informada por Ideli, ocorreu depois que o presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP), e o presidente da Comissão de Relações Exteriores (CRE) da Casa, Fernando Collor (PTB-AL), dois ex-presidentes da República, em conversa com Dilma, manifestaram-se contrários ao fim do sigilo eterno dos documentos oficiais secretos.
"Eles são ex-presidentes, mas são dois senadores como nós. O governo tem que dizer se eles falam pelo governo ou não", afirma Pinheiro.
Collor, em reunião da CRE, ontem, leu - e distribuiu aos senadores - a defesa de sua posição. Disse que "aspectos" da proposta da Câmara "podem gerar impacto danoso não só à administração pública brasileira, mas, também e, principalmente, à segurança do Estado e da sociedade". O ex-presidente negou que sua preocupação seja preservar documentos referentes a seu governo. "Não se trata de questão pessoal ou de governo. É uma questão de Estado", disse.
Para Collor, a "versão oficial do governo" é a do projeto enviado de Lula, que ele disse apoiar "com pequenas adaptações de redação e um aperfeiçoamento pontual em poucos aspectos". No projeto original, o caráter sigiloso de um documento oficial pode ser prorrogado sem limitação. No da Câmara, o prazo do sigilo é de 25 anos, podendo ser prorrogado apenas uma vez. A classificação de um documento ultrassecreto, portanto, poderia ser de até 50 anos.
Collor defendeu 11 alterações no projeto da Câmara. Entre elas, a possibilidade de que documentos com informações sigilosas e de caráter ultrassecreto, "ou cuja divulgação ameace a segurança do Estado e da sociedade", tenham o sigilo prorrogado mais de uma vez. Ele também quer retirar a obrigatoriedade de divulgação de informações na internet, o que ele chama de "oficialização do Wikileaks".
Propõe o resgate do caráter confidencial de determinados documentos e informações e manter informações referentes ao presidente da República como secretas.
O ex-presidente relatou ter conversado com Dilma, que se mostrou "sensibilizada" a encontrar uma solução. Disse que em 5 de maio levou suas sugestões ao então ministro da Casa Civil, Antonio Palocci, que ficou de determinar reunião entre as assessorias para tratar das modificações. Collor teria conversado também com o ex-ministro Luiz Sérgio.


Brasil é lanterna no acesso à informação

Ana Paula Grabois e Luiz Felipe Marques* | De São Paulo

A defesa do sigilo eterno pelo governo trata-se de um retrocesso no processo de abertura de informações pelo qual o país vinha passando depois da redemocratização, avaliam especialistas ouvidos pelo Valor.
Em ranking elaborado pelo Centro Knight para o Jornalismo das Américas, o Brasil é um dos mais atrasados no tema. Entre nove nações da América Latina, muitas das quais passaram igualmente por ditaduras, o Brasil só está em situação melhor que Paraguai e Venezuela.
A historiadora da Universidade de Brasília (UnB) Albene Menezes, diz que todos os países trabalham com normas de restrições e prazos para a divulgação de documentos secretos, em alguns casos se baseando em princípios definidos pela Organização das Nações Unidas (ONU).
"Mas a ideia de documentos que se mantenham secretos para a eternidade é um absurdo. Ainda mais quando apoiada por pessoas que poderiam proteger passagens de seus próprios governos", diz. Além disso, afirma, países que buscam regulamentar a questão, geralmente, avançam na abertura dos documentos e não o contrário, como ocorre agora.
Para a historiadora, o problema não se restringe a questões da ditadura, mas também a episódios como a Guerra do Paraguai, como afirmaram os ex-presidentes e senadores José Sarney (PMDB-AP) e Fernando Collor (PTB-AL). Os documentos poderiam envolver questões com o Paraguai, que perdeu parte de seu território com a guerra. A historiadora, contudo, defende que o país não deveria "esconder a sua história, mas resolvê-la".
Albene cita a Alemanha como um país que resolveu bem a questão do sigilo. Depois da reunificação alemã, o país abriu o acesso a arquivos do governo, em paralelo à legislação. Na América Latina, a Argentina, o Chile e o Uruguai também liberaram a consulta a documentos, o que ocorreu por meio de decretos ou legislações específicas para a questão.
O historiador Francisco Doratioto (UnB), autor do livro Maldita Guerra, sobre a Guerra do Paraguai, afirma que "soa muito estranho guardar documentos". "Numa sociedade democrática, a transparência dos atos públicos é uma das características", afirma. Ele até entende a preocupação d o ex-presidente José Sarney e Fernando Collor por conta de questões da delimitação das fronteiras, mas acredita que pouca novidade deve haver nesses arquivos denominados ultrassecretos.
Durante a pesquisa do livro, em 1998, um arquivo da Guerra do Paraguai foi aberto. Nada havia de inédito no material. "O conteúdo era absolutamente risível. Quase tudo que estava guardado ali tinha sido publicado no século 19", conta o historiador. Doratioto questiona se a documentação em xeque atualmente seja tão delicada a ponto de criar problemas ao processo de integração da América do Sul e sugere a criação de uma comissão de especialistas para avaliar o conteúdo.
"A pergunta é se essa documentação tida como confidencial sobre o Acre ou o Paraguai é inédita. Sabemos muita coisa, como se deu, sabemos que Acre era reconhecido como boliviano pelo Estado brasileiro", afirma. "Eventualmente o que o senador Sarney tenha considerado que era uma informação exclusiva talvez não seja mais", completa.
Já o ex-ministro das Relações Exteriores de FHC Celso Lafer e atual presidente da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) diz ver sentido apenas no sigilo de negociações em andamento. Passados alguns anos, defende a abertura das informações.
Lafer não vê dificuldades ao governo brasileiro se o sigilo das informações for quebrado. "Acho até contraproducente", diz, sob o argumento de que o sigilo eterno pode gerar desconfiança nos outros países com quem o Brasil tenta fomentar integração. Sobre o posicionamento dos ex-presidentes Sarney e Collor, o ex-ministro Lafer afirma não ter "nenhuma explicação sobre o assunto".
Na análise do coordenador do Fórum de Direito de Acesso à Informação Pública, Fernando Oliveira Paulino, também professor da UnB, sem uma legislação específica e condizente com a de outros países desenvolvidos, o Brasil fica "atrasado e com um déficit em memória e história com sua própria população".
A falta de legislação também poderia ser um empecilho para futuros investimentos estrangeiros no Brasil, visto que não apenas documentos já publicados estariam cobertos por uma eventual lei, mas também decisões de governos atualmente no poder. Paulino cita o México como um país que desenvolveu bem a questão de acesso a informações econômicas.

HISTÓRIA
Ambição e castigo
No trajeto da Vila Maria a Brasília, terminado há 50 anos, Jânio Quadros fez de seu caminho um caso de populismo levado às últimas consequências.

Francisco Góes | Do Rio

O ano é 1960. Um casal de classe média almoça em companhia do filho. A mulher está em pé e, enquanto tempera um prato, pergunta ao marido, que está começando a comer: "Você já viu a conta do leiteiro"? Sem demonstrar surpresa, ele diz: "Novo aumento, não é"? Como ela permanece em silêncio, ele insiste: “E está certa a conta"? Ela responde: "Infelizmente, está". E o homem conclui: "Éééé, o jeito é votar no Jânio". Corta e surge em cena o rosto de um homem de bigode e óculos, abaixo do qual se lê o nome Jânio Quadros. Ao fundo, um locutor anuncia: "Jânio é a única esperança do Brasil".
O rudimentar comercial de TV surgiu como novidade nas eleições presidenciais de 1960, quando pouquíssimas pessoas tinham o aparelho em casa e, quem podia, assistia televisão no vizinho. Naquela campanha, Jânio bateu os adversários por larga maioria, o que se denominou de "revolução pelo voto". Mas a verdadeira revolução - e talvez o termo mais apropriado fosse convulsão - ainda estava por vir. E chegaria sete meses após a posse de Jânio como presidente do Brasil, quando ele, subitamente, renunciou ao cargo, em 25 de agosto de 1961. Em mensagem enviada ao Congresso Nacional, alegou que "forças terríveis" se levantavam contra ele. Ainda hoje há dúvidas a quais forças Jânio se referia. Todas as evidências indicam que ele quis dar um golpe de Estado.
Perplexo, o país viu o Rio Grande do Sul levantar-se em armas, num movimento em defesa da legalidade, liderado pelo governador Leonel Brizola, que exigia a posse do vice-presidente, João Goulart, cujo nome fora vetado pelos ministros militares. Goulart encontrava-se em missão à China. Instaurou-se a crise institucional e o país ficou à beira da guerra civil. Esses acontecimentos serão relembrados, no segundo semestre, com seminários, exposições, programações artísticas e culturais em São Paulo e Porto Alegre. O deputado federal Brizola Neto (PDT-RJ) também articula eventos em Brasília e no Rio para recordar um período conturbado, mas rico, da história do Brasil.
Embora o janismo tenha desaparecido com a morte do ex-presidente, em fevereiro de 1992, o estilo de liderança centralizador, autoritário e personalista - imprimido por Jânio ao longo de mais de 40 anos de vida pública - perdurou, diz a cientista política Vera Chaia, do departamento de política da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, autora do livro "A Liderança Política de Jânio Quadros (1947-1990)". Cinquenta anos depois da renúncia, o estilo janista de fazer política ainda provoca discussões. Há lugar no Brasil de hoje para lideranças políticas governarem acima dos partidos, como fez Jânio, com base no personalismo?
Vera considera que não há mais espaço para negar partidos, embora reconheça que haja descrença nas agremiações partidárias. "É impossível, hoje, pensar que se pode governar sozinho." José Álvaro Moisés, professor do departamento de ciência política da Universidade de São Paulo, considera que o Brasil precisa fortalecer a estrutura do sistema partidário e das instituições democráticas com base na doutrina da divisão de poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário). "No Brasil, o Legislativo é muito dependente do Executivo, que é quem define a agenda do Legislativo." Segundo Moisés, o sistema de eleição proporcional, com lista aberta de candidatos, personaliza muito a escolha. "Assim, os eleitores são chamados a escolher pessoas e não programas eleitorais, o que encarece as campanhas e aumenta as chances de corrupção, caixa 2 e de empresas que fazem contribuição a candidatos e partidos na perspectiva de receber benefícios no futuro."
Moisés coordenou uma pesquisa que confirmou um paradoxo: os brasileiros têm expressado maior apoio e adesão ao regime democrático, como o sistema ideal, mas, ao mesmo tempo, revelam cada vez maior descrença e desconfiança em relação às instituições democráticas, em especial os partidos políticos e o Congresso. Cerca de 30% dos entrevistados acreditam que a democracia pode funcionar sem os partidos e sem o Congresso.
Em relação à questão do personalismo, Moisés acredita que essa é uma característica da política na América Latina, com a qual os países da região continuam convivendo. No caso brasileiro, ainda perdura a lembrança do impeachment de Fernando Collor, há quase 20 anos, que deixou o poder de forma precoce depois de se eleger presidente por um partido inexpressivo, o PRN.
Collor surgiu como o "caçador de marajás", repetindo, em outro contexto, o tom de campanha moralista adotado por Jânio em 1960, quando apresentou a bandeira da luta contra a corrupção e tomou a vassoura como símbolo. O cientista político Carlos Manhanelli vai lançar, em julho, o livro "Jingles Eleitorais e Marketing Político - Uma Dupla do Barulho", no qual analisa a famosa marchinha da campanha eleitoral de Jânio, em 1960. O jingle "Varre, Varre Vassourinha", de autoria de Antonio Almeida e com interpretação de Alcides Gerardi, está associado a um Jânio que se apresenta como arauto da mudança, disposto a varrer tudo de errado para fora da política, escreve Manhanelli em um capítulo do livro.
Além da corrupção, Quadros também defendia o combate à inflação. Mas encarou esses temas com voluntarismo, como se a inflação, que tanto preocupava o casal da peça publicitária de campanha, pudesse ser debelada a partir de sua vontade pessoal. "Essa questão moralista, de matar o tigre com a bala de prata, não conduz politicamente a bons resultados", diz Marly Motta, pesquisadora do Centro de Pesquisa e Documentação de História do Brasil, da Fundação Getúlio Vargas. Ela é autora do artigo "Eleição em tempos de inflação", em que traça paralelos entre as campanhas eleitorais de 1960 e 1989.
"Com uma base regional e partidária frágil, [Collor] apostou em um discurso inflamado, em que se apresentava como um herói solitário combatendo a corrupção encarnada na figura dos marajás", escreve Marly. Ela avalia que o erro, tanto de Jânio, como de Collor, foi tentar governar acima dos partidos, sem bases políticas sólidas no Congresso. "No Brasil, a política não é para amadores. Pode até parecer, mas não é", conclui.
Moisés, da USP, afirma que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva não se assemelha nem a Jânio nem a Collor, mas exerceu sua liderança, em alguns casos, de formas que se sobrepunham às instituições democráticas. "No segundo mandato, Lula impôs uma candidata que nem era do partido originalmente, o que não retira o mérito da presidente Dilma [Rousseff]. Não houve discussão no PT."
No caso de Jânio, embora ele tenha assumido todos os cargos eletivos via eleições, sempre tentou se desvencilhar dos partidos. "Menosprezava a atuação partidária e o diálogo democrático", diz Vera Chaia. Como consequência, um grupo reduzido de seguidores, simpatizantes e amigos, terminou por assumir tarefas de um partido político. "Certos traços o acompanharão durante toda sua trajetória política: defesa da moralização administrativa, moralização de usos e costumes e, principalmente, a importância primordial que atribui ao Estado como agente político controlador, fiscalizador e educador da sociedade", escreve Vera.
No segundo semestre, Vera organizará um evento na PUC-SP para fazer uma reflexão sobre lideranças políticas, incluindo personalidades como Collor, Paulo Maluf, Luiz Inácio Lula da Silva, Adhemar de Barros e Jânio Quadros.
Advogado e professor de geografia e português nos colégios Dante Alighieri e Vera Cruz, em São Paulo, Jânio começou na política como vereador, em 1947. Trilhou carreira meteórica, sendo eleito deputado estadual e federal, prefeito de São Paulo (por duas vezes), governador de São Paulo e presidente da República. Inscreveu sua vida pública na tradição da política brasileira, iniciada por Vargas, baseada em forte viés personalista e autoritário.
Mas se, por um lado, Jânio era esse líder personalista, com profundo apelo popular, por outro, incorporou certa ruptura de padrão de comportamento, de apresentação pessoal, na aproximação que sempre cultivou com as massas. Apresentava-se mal-vestido para os padrões da época, com caspa no cabelo, o sanduiche de mortadela no bolso. "Mas, diferente de Vargas, que foi o pai, Jânio Quadros era como se fosse um irmão mais culto", compara Marly Motta.
Jânio teve, no início, o respaldo do governador da Guanabara, Carlos Lacerda, para quem a única maneira de a UDN, seu partido, alcançar o poder era apoiar a candidatura de Jânio à Presidência. Em seu curto governo, no entanto, Jânio perdeu o respaldo dos aliados e ficou isolado no poder. Na véspera da renúncia, em 24 de agosto, Lacerda denunciou em cadeia estadual de rádio e televisão articulações com base nas quais Jânio pretendia preparar o país para uma reforma institucional, na qual o Congresso ficaria em recesso remunerado, relembra Vera Chaia em seu livro.
Jorge Ferreira, professor de história do Brasil da Universidade Federal Fluminense, diz que todos os indícios levam a crer que Jânio quis dar o golpe. "Mas não há comprovação, provas materiais." Segundo Ferreira, Jânio criou animosidades ao fazer devassas no serviço público por meio da criação de comissões de inquérito para apurar denúncias de corrupção. Apesar de ter seguido uma política ortodoxa em matéria de política econômica, ele também contrariou interesses ao adotar uma política externa independente, firmando acordos comerciais com países socialistas e aproximando-se da África.
Entre a eleição e a posse, visitou Cuba e, como presidente, condecorou Ernesto Che Guevara, em Brasília. Essa política externa dividiu a sociedade brasileira e desagradou a UDN. A ideia era fazer o Brasil ocupar um lugar no mundo ao lado de países como Iugoslávia e Egito, cujo então presidente, Gamal Abdel Nasser, era, para Jânio, uma referência.
Um dos indícios da tentativa de golpe citados por Ferreira está no livro "Jânio Quadros - Memorial à História do Brasil", escrito por Jânio Quadros Neto (filho de Dirce Tutu Quadros) e por Eduardo Lobo Gualazzi. No capítulo sobre a renúncia, o neto relata diálogo que teve com o avô, meses antes da morte deste, durante o qual o ex-presidente teria confidenciado suas intenções. "A minha renúncia era para ter sido uma articulação: nunca imaginei que ela teria sido de fato aceita e executada. Renunciei à minha candidatura à Presidência, em 1960, e ela não foi aceita. Voltei com mais fôlego e força. Meu ato de 25 de agosto de 1961 foi uma estratégia política que não deu certo, uma tentativa de governabilidade. Também foi o maior fracasso político da história republicana do país. O maior erro que já cometi."



A resistência, por respeito à legalidade

Na noite de 28 de agosto de 1961, em uma pequena sala sem janelas, no porão do Palácio Piratini, em Porto Alegre, o locutor Lauro Hagemann, ajeitando-se na cadeira, lê uma inflamada mensagem aos militares: "Atenção, ouvintes do Rio Grande do Sul e do Brasil. Neste momento, as emissoras que compõem a Rede Nacional da Legalidade passam a apresentar uma programação de homenagem especial às Forças Armadas do Brasil (...)". O locutor elogia o III Exército, uma das maiores guarnições do país na época, e seu comandante, o general Machado Lopes. Lopes aderira ao movimento pela legalidade, lançado sob liderança do governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, para exigir a posse do vice-presidente João Goulart depois da renúncia de Jânio Quadros.O episódio está narrado em "1961 - Que as Armas Não Falem", dos jornalistas Paulo Markun e Duda Hamilton. O livro descreve os episódios que envolveram a renúncia de Jânio e a resistência de Brizola. Para a professora Maria José Barreiras, do curso de história da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, a decisão de Brizola de requisitar a rádio Guaíba para transmitir as mensagens e ganhar apoios teve um peso "grandioso" para o movimento. "A defesa das instituições democráticas, invariavelmente frágeis na história do país, foi a principal contribuição do movimento."
Tânia Almeida, diretora de relações públicas da Secretaria de Comunicação e Inclusão Digital do governo gaúcho, diz que a pequena sala de onde partiam as transmissões de Brizola em 1961 será transformada no Memorial da Rádio da Legalidade. O projeto faz parte de uma série de comemorações que o governo do Rio Grande do Sul está preparando para relembrar a data. Entre 25 de agosto, data da renúncia de Jânio, e 7 de setembro, quando Goulart tomou posse como presidente de um governo parlamentarista, do qual Tancredo Neves era primeiro-ministro, haverá uma série de eventos. Um site sobre o movimento pela legalidade ficará hospedado no portal do governo do Rio Grande do Sul.
Nas escolas estaduais de ensino médio, a Secretaria de Educação vai promover um concurso e os melhores trabalhos serão editados em livro a ser lançado na Feira do Livro de Porto Alegre. Também será produzido o Musical da Legalidade - espetáculo de cor e som, com duas apresentações na capital gaúcha. Um ônibus, dotado de equipamento multimídia, vai rodar o interior do Estado exibindo filmes documentais sobre o tema.
Na primeira semana de setembro, o Partido Democrático Trabalhista (PDT) deve fazer seu congresso nacional em Porto Alegre, tendo como tema os 50 anos do movimento pela legalidade, com exposição de fotos e documentos da época. O deputado Brizola Neto (PDT-RJ) tem conversado com o irmão, Leonel Brizola Neto, que é vereador no Rio, para organizar a semana da Legalidade na Cinelândia, com exposições de fotos e a exibição de um documentário. O deputado também vem tratando da montagem de uma exposição no espaço que liga os anexos 3 e 4 da Câmara dos Deputados ao plenário.
Almino Affonso, ministro do Trabalho e Previdência Social de Goulart, testemunha dos episódios de 1961, recorda que se pretendia, com a resistência no Sul, que o vice-presidente cruzasse a fronteira (ele voltou da China para o Uruguai) e rumasse para Brasília, em uma espécie de repetição do gesto de Getúlio Vargas, que em 1930 chegou ao Rio de Janeiro. "Jango se recusou, para não levar o povo a uma luta sangrenta. Ele aceitou o sistema parlamentarista como solução conciliatória e isso levou a uma divisão no PTB. Eu critiquei o que chamei de transação inaceitável", lembra Almino, que foi líder do partido na Câmara Federal.
Almino considera, como disse em entrevista ao Valor (leia na página seguinte), que o governo de Goulart foi de um ano e dois meses, contando-se o período entre o retorno ao presidencialismo, em 1963, e o golpe de março de 1964. "Antes [no parlamentarismo], Jango tinha influência, mas o chefe de governo era o presidente do conselho."
O governo Goulart viu-se submetido a impasses nos campos econômico, social e institucional. "Um analista do período disse, corretamente, que foi um governo sitiado", recorda Almino. Segundo ele, Goulart chegou a propor uma política de convergência, baseada em maioria parlamentar, que contaria com o apoio de personalidades de diferentes partidos que aceitassem um determinado tipo de programa, garantindo a governabilidade.
"Fiz missões com duas lideranças da época. Fui, em nome do presidente, ao senador João Agripino, uma das maiores figuras da UDN, para apresentar a proposta. Ele se encantou. Fui a Tancredo Neves, que também se encantou. Chamei San Tiago Dantas e entreguei a ele a tarefa de articular um programa alternativo. Foram dias e dias na casa de San Tiago, no Rio, onde estavam figuras de todos os partidos. Sarney, da UDN, José Aparecido [de Oliveira], todos os partidos que aceitassem esse programa genérico. O programa foi publicado na "Folha de S. Paulo", no final do governo, já em 1964. Mas não se podia completar a aliança se o PTB não viesse homogêneo. Brizola se recusou e o programa foi por água abaixo."
FG



O objetivo era dar um golpe, diz Almino

Francisco Góes | Do Rio

Almino Affonso, ex-ministro do Trabalho e Previdência Social do governo João Goulart, viveu de perto os acontecimentos da renúncia de Jânio Quadros, em 25 de agosto de 1961. Na época, era líder da bancada do PTB na Câmara dos Deputados. Nesta entrevista, Almino reforça sua convicção de que, ao renunciar, Jânio tentou dar um golpe de Estado. Cita livros, um dos quais escrito pelo próprio ex-presidente em parceria com seu ministro das Relações Exteriores, Afonso Arinos de Mello Franco, no qual se encontra, segundo Almino, uma "confissão" sobre o golpe. Para Almino, há uma relação de causa e efeito entre a renúncia de Jânio e os fatos que desaguaram no golpe de 64.Aos 82 anos, Almino, que foi vice-governador de São Paulo na gestão de Orestes Quércia, prepara um livro sobre o golpe de 64, que espera ver concluído até o fim do ano. A seguir, os principais trechos da entrevista de Almino.

Valor: Valor: A renúncia de Jânio Quadros foi uma tentativa de golpe?
Almino Affonso: Não tenho a menor dúvida que foi uma tentativa de golpe de Estado. Como malogrou, é algo que merece análise mais demorada. Jânio escreveu um livro com Afonso Arinos de Melo Franco ("História do Povo Brasileiro"), que inclui capítulo sobre a renúncia. É a prova confessional de que houve essa tentativa. Há outro livro ("A Renúncia de Jânio"), de Carlos Castello Branco, secretário de imprensa de Jânio, no qual ele relata que Jânio Quadros, inquieto, indagava quanto tempo João Goulart [então vice-presidente] passaria ainda fora do Brasil [Goulart estava em missão à China]. No livro de Jânio e de Afonso Arinos, fica claro que, com Goulart na China, abria-se espaço para considerar que o país estava acéfalo. Essa é a prova confessada.

Valor: Valor: Recebida a mensagem de renúncia, o que aconteceu no Congresso?
Almino: Foi uma surpresa absoluta. Todo mundo saiu a correr dos gabinetes para o plenário. O deputado Dirceu Cardoso, do PSD, recebeu o texto da renúncia na Câmara e o levou para a tribuna, onde fez a leitura sem o conhecimento do presidente da casa, Ranieri Mazzilli. A carta formal de renúncia e a carta à nação, na qual Jânio tentava explicar seu gesto, tinham sido recebidas do ministro da Justiça, Oscar Pedroso Horta, pelo presidente do Senado, Auro de Moura Andrade. O normal teria sido Moura Andrade mandar os documentos para o presidente da Câmara. Mas coube aos jornalistas divulgar o fato de imediato.

Valor: Valor: Qual sua explicação para isso?
Almino: Nos dias posteriores, a versão dominante foi de que Pedroso Horta teria recebido de Jânio uma missão com duas etapas. Faria chegar ao presidente do Senado a carta à nação, a explicação. Assim, criaria um fato político divulgando a decisão de renunciar, mas não formalizaria a renúncia. Em uma segunda etapa, seria entregue o ofício formalizando a decisão de renunciar. Dessa maneira, criaria um clima político de convulsão nacional ? Jânio ainda tinha base popular expressiva ? e poderia medir o apoio do povo à decisão que ele estaria para tomar. Por que Pedroso Horta teria entregue simultaneamente os dois documentos? Como jurista, ele tinha consciência de que, no momento em que entregasse o ofício formal, a renúncia era um ato unilateral de vontade e, portanto, independia do Congresso, era um fato consumado.

Valor: Valor: O senhor, como líder da bancada do PTB na Câmara, discursou dizendo que seu partido não poderia aceitar a renúncia senão como um golpe...
Almino: Fui o primeiro a falar depois de Dirceu Cardoso. De forma intuitiva, na hora, eu percebi: "É um golpe". No meu discurso, cinco minutos após os fatos serem de conhecimento geral, eu disse que se as Forças armadas davam a Jânio o respaldo que ele declarava, se não havia no meio empresarial nada que se opussesse a ele de forma a exigir a renúncia e se também não havia nada contra ele no cenário internacional, por que, então, a renúncia por conta de "Forças terríveis"?

Valor: Valor: Que "Forças terríveis" eram essas?
Almino: Uma vez que todos esses atores determinantes na vida pública brasileira não tinham nada contra Jânio que justificassem essa medida extrema, onde estavam as "Forças terríveis"? Eu disse no meu discurso que só havia uma razão de ser: por conta de um tumulto, resultante da renúncia, ele esperava voltar ao poder na plenitude dos poderes ditatoriais. Tempos depois, o deputado Pedro Aleixo, líder da UDN na Câmara, interpretou meu discurso como uma clara intuição mediúnica [risos]. Embora minha opinião [sobre o golpe] tenha sido intuitiva em um primeiro momento, depois surgiram elementos que me parecem provas da intencionalidade.

Valor: Valor: Jânio, com seu ato de renúncia, foi responsável pelo golpe de 1964?
Almino: O episódio Jânio reflete-se na continuidade da crise política que termina levando à deposição de João Goulart. Jânio cria, pela renúncia, uma convulsão nacional até então inédita. Veio o veto dos militares impedindo Goulart de assumir, conforme previsto na Constituição. Mas, na hora em que o golpe [de Jânio] malogra, os militares assumem uma espécie de continuidade. Vetam a posse de Goulart, surge a crise da legalidade e o Rio Grande do Sul se levanta em armas. Goiás apoia. Foi uma convulsão que quase nos levou à guerra civil por decorrência do veto dos ministros militares. Há uma relação de causa e efeito porque a renúncia de Jânio e a crise motivada pelo seu ato refletem-se em fatos que vão desaguar no golpe de 64.

Valor: Valor: Após a renúncia de Jânio, o parlamentarismo surgiu como arranjo provisório para evitar a guerra civil. Qual foi a participação que o senhor teve na comissão mista que propôs a adoção do parlamentarismo como solução conciliatória?
Almino: Embora eu seja um defensor histórico do parlamentarismo, considerei na ocasião que as circunstâncias [para implantar esse regime] não eram aceitáveis. Lutei contra a solução parlamentarista, mas, na hora em que se criou a comissão para elaborar o texto, uma vez que era decisão majoritária, o PTB não podia deixar de ter seus representantes. E deputados do partido participaram da comissão, mas não fui eu. Chamei a solução [parlamentarista] de golpe branco, porque a Constituição de 46 impedia que se pudesse emendá-la em período de convulsão política e institucional.

Valor: Valor: Ainda há políticos com perfil janista ou com a morte de Jânio o janismo desapareceu?
Affonso: O janismo não tem presença. Ninguém mais repetiu a forma absurda com a qual ele se chocou com o Congresso, a quem ridicularizava. Ele considerava aquilo tudo desprezível.

Valor: Valor: Qual é a lição que ficou para o Brasil?
Almino: Para mim, é dramático porque voltamos a ter, com gravidade maior, algo difícil de sustentar em uma sociedade com tantos problemas, mantida a normalidade institucional, se não existem partidos políticos consubstanciados, com programas definidos, com militância política capaz de expressar os vários ramos da sociedade. Tínhamos pouco naquele tempo, mas, paradoxalmente, até tinhamos mais. Hoje, que partido tem visão clara e definida de seu programa? Que partido tem militância em que determinado líder fala em nome da coletividade partidiária? Há divisão interna para todos os lados. Temos uma desarticulação política muito grande. Como se articulam respostas para os grandes problemas nacionais sem ter uma massa orgânica que sustente essa ou aquela proposição? Nos falta uma homogenidade, ainda que dividida pelos vários tipos de programas, mas que permita à sociedade dizer: "Nosso rumo é este". Como não temos, volta a personalidade a jogar um papel fundamental, como foi o caso de Lula e, ao que parece, continua sendo.

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