DESTAQUE DE CAPA
PODER
Dilma determina o fim do sigilo eterno de documentos
Presidente dá ordem para que base aprove lei de acesso a papéis secretos
Medida pode revelar o conteúdo de telegramas diplomáticos, relatórios da ditadura militar e até da Guerra do Paraguai
FERNANDO RODRIGUES
FERNANDA ODILLA
DE BRASÍLIA
A presidente Dilma Rousseff determinou o fim do sigilo eterno dos documentos classificados como ultrassecretos. Ela ordenou que a base do governo acelere no Senado a aprovação do projeto de lei de direito de acesso a informações públicas, já aprovado na Câmara.
A ideia do Planalto é sancionar o texto no Dia Mundial de Liberdade de Imprensa, data celebrada anualmente em 3 de maio pela ONU.
Todo documento considerado sigiloso recebe um grau de classificação. Cabe à autoridade ou ao órgão que produziu o documento estabelecer o grau de sigilo.
No passado, o governo federal considerou sigilosos telegramas diplomáticos, documentos do período da ditadura e da Guerra do Paraguai, entre outros.
Hoje, documentos públicos classificados como ultrassecretos ficam em sigilo até 30 anos, mas esse prazo pode ser renovado indefinidamente. A política foi adotada pelos presidentes Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010).
VOTO VENCIDO
O projeto de lei em análise foi enviado ao Congresso em 2009. Embora reduzisse a brecha para o sigilo eterno, mantinha o dispositivo. O texto saiu da Casa Civil, quando Dilma era ministra.
À época, Lula arbitrou em favor de setores do governo favoráveis ao sigilo eterno, Itamaraty e Defesa. Dilma foi voto vencido e não se opôs.
A Câmara aprovou o texto no ano passado, mas derrubou as renovações sucessivas de sigilo. Pela nova regra, os papéis ficarão longe do público se forem reservados (5 anos), secretos (15 anos) e ultrassecretos (25 anos).
Apenas os ultrassecretos poderão ter uma única renovação do prazo. Com a aprovação da lei, nenhum papel ficará por mais de 50 anos com acesso restrito.
Quando a Câmara introduziu essa alteração em 2010, o Planalto, ainda sob Lula, imaginou que o dispositivo do sigilo eterno seria restaurado no Senado. Mas, no início deste mês, Dilma determinou que o governo não fizesse carga nessa área.
MUDANÇA DE TOM
Uma indicação da disposição de Dilma foi vista ontem no Senado. O relator do projeto de lei de acesso, o governista Walter Pinheiro (PT-BA), propôs aprovar o texto tal qual veio da Câmara.
Ontem, durante audiência pública no Senado, o ministro Jorge Hage (Controladoria-Geral da União) também pronunciou-se favorável ao fim do sigilo.
A expectativa é que o projeto seja classificado como urgente e tramite diretamente no plenário do Senado.
Há ainda um aspecto redacional não resolvido no texto. Ao ser alterado na Câmara, o projeto determinou a criação da Comissão Mista de Reavaliação de Informações, composta por integrantes dos Três Poderes.
Essa comissão teria o poder, por exemplo, de reavaliar casos de documentos classificados como ultrassecretos. Técnicos legislativos no Senado consideraram essa mistura inconstitucional.
Aeronáutica investigou FHC durante governo Itamar
RUBENS VALENTE
JOÃO CARLOS MAGALHÃES
DE BRASÍLIA
O serviço de inteligência da Aeronáutica, cujos arquivos secretos foram entregues ao Arquivo Nacional de Brasília e liberados ontem à consulta, teve como um de seus alvos o próprio governo, durante a gestão Itamar Franco (1992-1994), na figura do então ministro da Fazenda Fernando Henrique Cardoso.
O "relatório de apreciação" confidencial de cinco páginas intitulado "O Ministro da Fazenda" foi produzido pela Secretaria de Inteligência da FAB em 12 de janeiro de 1994.
Segundo anotação manuscrita na capa do documento, ele foi "entregue em mãos" ao chefe da Secint [Secretaria de Inteligência], que o entregou ao Miniaer [Ministro da Aeronáutica]", o tenente-brigadeiro Lélio Viana Lôbo.
O texto sugere que o Diálogo Interamericano, um conhecido grupo de estudos sediado em Washington do qual FHC e outros ex-presidentes latino-americanos fazem parte, é uma "sucursal da Comissão Trilateral das Américas".
Anexo da Agência de Inteligência da FAB no Rio diz que a "Trilateral", "associação de poderosos" formada por "200 personalidades, entre economistas, advogados, banqueiros e executivos", busca criar "um sistema internacional reordenado".
A "Trilateral" é citada em teorias conspiratórias na internet sobre supostos sistemas de dominação mundial.
O relatório é uma espécie de perfil do então ministro. Diz que ele possui "um currículo invejável, todo construído na esquerda e na oposição aos governos pós-1964".
"Eu não sabia [que era alvo da Aeronáutica]. Mas todo mundo era. Não fico surpreso", afirmou FHC. "É uma perda de tempo [o relatório]. Errado." Para ele, o relatório provavelmente é resultado de seu histórico na esquerda.
Ele disse que o Diálogo Interamericano nada tem a ver com a "Comissão Trilateral".
A FAB disse anteontem que não comentaria papéis aos quais não teve acesso. Itamar afirmou desconhecer as investigações e se disse surpreso. Lélio Viana Lôbo não foi localizado ontem.
Editoriais
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A falácia do plebiscito
Com o país ainda sob o impacto da tragédia de Realengo, surge no Senado a ideia de realizar uma nova consulta popular para tratar do desarmamento. A proposta pode soar simpática, num momento de grande comoção, mas não parece ser o caminho mais adequado -nem o mais eficaz- para reduzir a circulação de armas no país.
Considere-se, em primeiro lugar, que a população foi convocada a se pronunciar sobre a questão há menos de seis anos, em outubro de 2005. Perguntava-se o seguinte no referendo: "O comércio de armas de fogo e munição deve ser proibido no Brasil?" Responderam 64%: "Não".
Esta Folha defendeu naquela oportunidade a posição derrotada, mas propôs o "sim" sem alimentar ilusões. O jornal lembrava que, em termos legais, pouca coisa mudaria em relação ao que estava disposto no Estatuto do Desarmamento -em vigor desde o final de 2003-, já bastante restritivo a respeito do registro, posse e comercialização de armas de fogo.
Em vez de recolocar em pauta, de maneira algo oportunista, uma questão que há pouco foi objeto da apreciação popular, e em vez de induzir a uma solução falaciosa do problema, seria melhor que o poder público se dedicasse à tarefa mais urgente de reduzir a distância entre a lei e a realidade.
Trata-se menos de mudar a legislação e muito mais de implementar a fiscalização sobre o comércio ilegal de armas.
Como afirmaram ontem em artigo neste jornal dois membros do Instituto Sou da Paz, "é preciso melhorar a qualidade das informações sobre armas em circulação e fiscalizar com mais rigor grupos e locais vulneráveis a desvios: colecionadores, atiradores, caçadores e empresas de segurança privada, além de estoques em fóruns, corporações policiais ou batalhões das Forças Armadas".
A campanha do governo federal pelo desarmamento voluntário, cujo início foi antecipado para maio, merece ser apoiada. Iniciativa semelhante, nos meses que antecederam o referendo de 2005, resultou no recolhimento de mais de 500 mil armas.
Nada, porém, substitui a necessidade de combate mais eficaz das polícias ao tráfico de armas, no interior e nas fronteiras do país.
MUNDO
China e Brasil têm posições diferentes na ONU, diz Patriota
Para o chanceler, chineses discordam de aliança com Japão e Índia, com os quais têm desavenças históricas
Manifestação ocorre após Pequim frustrar delegação brasileira e não apoiar entrada no Conselho de Segurança
FABIANO MAISONNAVE
DE PEQUIM
O ministro das Relações Exteriores, Antonio Patriota, admitiu ontem que há diferenças entre Brasil e China em relação à reforma do Conselho de Segurança da ONU.
Segundo ele, essa é a explicação para o fato de o comunicado conjunto por ocasião da visita da presidente Dilma Rousseff ao país não conter um apoio direto da China à pretensão de uma vaga permanente no Conselho, o que frustrou a diplomacia brasileira.
"A China não tem uma posição idêntica à do Brasil sobre a reforma do Conselho de Segurança, ela tem dificuldades com alguns dos candidatos a membros permanentes", afirmou.
Segundo Patriota, o apoio chinês não tem sido mais explícito por causa da estratégia brasileira de se aliar a países que sofrem com a "reserva" de Pequim -casos de Japão e Índia, que também pleiteiam uma vaga.
Além de japoneses e indianos, a campanha internacional do Brasil por uma vaga é feita em coordenação com alemães. Os países formam o chamado G4.
"Desde alguns anos que a China diz que, quando chegar a hora da reforma, de identificar quem poderão ser os novos membros permanentes, o Brasil será um país com óbvias credenciais", disse o chanceler brasileiro.
Patriota fez as declarações um pouco antes de embarcar de Pequim rumo à ilha de Hainan (sul da China), onde a presidente Dilma participará da cúpula dos chamados Brics.
A China vem mantendo a posição oficial de defender uma reforma ampla que não se restrinja ao Conselho de Segurança, do qual é um dos cinco membros permanentes e com direito a veto.
REFORMA ABRANGENTE
Patriota disse que o comunicado conjunto foi uma "boa manifestação" por usar "linguagem afirmativa".
No comunicado, assinado anteontem por Dilma e seu anfitrião, Hu Jintao, os dois governos apoiam uma reforma abrangente da ONU.
Isso inclui o aumento da representação dos países em desenvolvimento no Conselho de Segurança como uma prioridade.
"A China atribui alta importância à influência e ao papel que o Brasil, como maior país em desenvolvimento do hemisfério ocidental, tem desempenhado nos assuntos regionais e internacionais, e compreende e apoia a aspiração brasileira de vir a desempenhar papel mais proeminente nas Nações Unidas", diz o texto.
Segundo diplomatas envolvidos no tema, a grande novidade foi a inclusão do termo "Conselho de Segurança" na declaração.
Frase
"Mudança de fundo não creio que tenha havido. É uma conciliação de uma disposição favorável em relação ao Brasil, e acho que hoje em dia até maior que no passado, com essa reserva com relação à articulação no G4"
ANTONIO PATRIOTA
chanceler brasileiro
Europa quer que Brasil integre suas forças de paz
Chefe da diplomacia do bloco vem ao país em maio reforçar convite
UE tem atualmente nove missões de paz em diversos países, todos com meta de reconstruir Estados arrasados
LUIS KAWAGUTI
ENVIADO ESPECIAL A BRUXELAS
A União Europeia (UE) está negociando a participação do Brasil em suas missões de paz na África, no Leste Europeu e no Oriente Médio.
Na visita ao país que fará no mês que vem, a chefe da diplomacia do bloco, Catherine Ashton, deve propor ao governo Dilma Rousseff a assinatura de um acordo com esse propósito.
O bloco europeu comanda hoje missões de manutenção da paz em nove países. Entre eles, Somália, Bósnia, Kosovo, Congo e Afeganistão.
A Folha apurou que o contato inicial da UE com o Brasil foi feito em julho do ano passado por meio de uma carta enviada ao então chanceler Celso Amorim.
O acordo deve prever diversos níveis de participação, desde o envio de tropas à utilização de policiais e profissionais da área jurídica -necessários na reconstrução de países que se recuperam de guerras recentes.
Segundo a UE, o pedido de suporte está relacionado à ambição brasileira de ampliar sua participação em ações internacionais.
A maioria das missões conduzidas pela UE (exceto a missão naval na Somália) tem caráter de manutenção e construção da paz. Elas se destinam a reconstruir o Estado de direito e treinar militares e policiais dos países auxiliados.
Apesar de se parecerem com algumas das missões da ONU, operam de forma independente da entidade.
Também não são de responsabilidade de um país europeu em específico, mas sim do bloco.
Se o governo brasileiro decidir participar de alguma das missões da UE, a questão terá de passar pelo crivo do Congresso.
O repórter LUIS KAWAGUTI viajou a convite da União Europeia
Uruguai pretende julgar 50 por ditadura
Revogação da anistia contra militares acusados de crimes nos anos 70 e 80 foi aprovada anteontem pelo Senado
Câmara ainda precisa votar proposta antes da sanção pelo presidente Mujica, ele próprio ex-ativista que foi preso
LUCAS FERRAZ
DE BUENOS AIRES
Se confirmada a invalidação de sua Lei da Anistia pelo Congresso, o Uruguai espera retomar pelo menos 50 ações judiciais contra militares acusados de crimes contra militantes de esquerda durante a ditadura (1973-85).
Por causa da vigência da lei, cuja aplicação foi anulada na noite de anteontem pelo Senado, esses processos ficaram travados na Justiça.
O projeto ainda precisa passar pela Câmara.
Segundo a organização uruguaia Serviço Paz e Justiça, responsável pela estimativa e por acompanhar as ações na área de direitos humanos, assim que o Congresso do país terminar de analisar a lei, será necessário realizar um novo levantamento sobre os crimes do período.
Mesmo com uma lei que travava o julgamento da maior parte dos crimes da ditadura, o Uruguai conseguiu condenar à prisão dois ex-ditadores -Gregorio Álvarez e Juan María Bordaberry- por violar os direitos humanos.
Além deles, outros 14 casos foram julgados pela Justiça, com a anuência da Suprema Corte do país, sem que a contestada lei fosse levada em consideração.
Como o entendimento da Suprema Corte não era para todos os casos, a Frente Ampla, coalizão do governo de José Pepe Mujica, apresentou no ano passado a norma interpretativa votada anteontem pelo Senado. Ela invalidou três artigos da lei.
POLÊMICA
Esses artigos consideravam prescritos os crimes ocorridos no período e afirmavam que a vontade estatal de julgar esses crimes "havia acabado".
De acordo com a votação dos senadores, a lei continua a existir, mas com esses três artigos nulos. Após apertada votação (16 dos 31 parlamentares seguiram o governo), o assunto será discutido no início de maio pelos deputados uruguaios.
Lá, onde o projeto começou a tramitar no ano passado, os partidários de Mujica são maioria. Ontem, o presidente -ele mesmo um ex-guerrilheiro que passou anos preso na ditadura- adiantou que não vetará a norma quando ela chegar em sua mesa para sanção.
A invalidação da lei causou polêmica no país. Em duas ocasiões (1989 e 2009), a população uruguaia rejeitou em plebiscito alterá-la.
Durante os anos de 1985 e 2005, quando o país foi governado pelos partidos Nacional e Colorado, não foi aceita nenhuma ação contra os militares.
Mas o cenário mudou após a eleição do primeiro presidente de esquerda, Tabaré Vásquez, em 2005. Ele e a Frente Ampla incentivaram os primeiros juízos.
O número total de mortos e desaparecidos durante os 12 anos de ditadura no Uruguai é incerto: segundo entidades de direitos humanos, são entre 200 e 295 vítimas. Não há um número de militares envolvidos em crimes durante o período.
Babel haitiana
No país caribenho, aulas são em francês, idioma pouco entendido pela massa que fala língua creóle, criando "apartheid linguístico" entre haitianos
FLÁVIA MARREIRO
ENVIADA ESPECIAL A PORTO PRÍNCIPE (HAITI)
Stèphanie Bien-Aimé diz que, de vez em quando, pede à professora para falar em creóle, e não em francês, para explicar uma equação de matemática.
"Eu entendo mais fácil. Vários alunos pedem", conta, ao lado das colegas. Todas com blusas brancas impecáveis e saia com detalhes em xadrez, estilo liceu francês.
Ainda assim, Stèphanie preferia estudar num colégio em que não se falasse creóle de jeito nenhum. "Há um que não se pode falar em creóle nem com os colegas no recreio", afirma.
A relação de dependência e rejeição da aluna em relação ao creóle, a língua de 80% dos haitianos, é parte de uma complexa e antiga questão do sistema educacional do país, que reemerge com a reconstrução após o terremoto de janeiro de 2010, que deixou mais de 300 mil mortos.
Para um grupo de linguistas e educadores -na ilha e na diáspora- só a adoção do creóle como a língua de ensino integral no Haiti acabará com uma espécie de "apartheid linguístico" que vigora no primeiro país da América Latina a obter independência da metrópole (a França, no início do século 19).
"Muitos dos professores não são fluentes em francês. E as crianças também não.
Então, as crianças não entendem nem francês nem matemática nem ciência", diz Michel DeGraff, haitiano professor de linguística do MIT (Massachusetts Institute of Technology), renomada instituição sediada nos EUA.
REFORMA EDUCACIONAL
Francês e creóle são línguas oficiais no país desde o fim dos anos 80. O creóle é um idioma que mistura, além de elementos da língua da antiga colônia, termos africanos e oriundos do espanhol.
Uma reforma educacional, dez anos antes, estabeleceu o idioma nativo como o de alfabetização e o principal nos primeiros anos de ensino.
Nos anos seguintes da escola, segundo a reforma, o francês passa a ser dominante, e o creóle segue como segunda língua. A mudança nunca foi implementada totalmente, e as melhores escolas privadas e algumas públicas resistem ao creóle, símbolo da massa pobre do país.
Em geral, na escola primária, os professores fazem apontamentos em francês, mas explicam em creóle. A maior parte dos livros-texto ainda está em francês.
As estimativas não estão atualizadas, mas em geral se diz que menos de 20% dos haitianos são fluentes em francês -falado e escrito.
E a língua, em geral, é a barreira para conseguir um bom emprego.
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