RIO
Exército vai deixar favelas em setembro
Militares darão lugar a dez UPPs nas comunidades, um mês antes do acordado entre governo do Estado e Ministério da Defesa
Vera Araújo
Agência O Globo
RIO – O Exército deve deixar os complexos do Alemão e da Penha, no Rio, em setembro, um mês antes do prazo acordado entre governo do Estado e Ministério da Defesa, dando lugar a nada menos que dez Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). Este será o maior conjunto de UPPs já instalado pela Secretaria de Segurança Pública do Rio, com o emprego de 2.200 policiais militares, o equivalente ao efetivo de quatro batalhões da PM.
A princípio, a ideia é criar um comando único das UPPs da região, que funcionaria no terreno da antiga fábrica da Coca-Cola, na Avenida Itaoca, em Ramos. De lá sairiam as ordens para os dez capitães da PM que comandariam as pacificadoras. Atualmente, o local é usado pela Força de Paz, sob as ordens do general-de-brigada Cesar Leme, que comanda também os 120 policiais dos dois batalhões de campanha da PM. Ao todo, há 19 favelas nos dois complexos.
Responsável pela Força de Paz do Alemão e da Penha desde dezembro do ano passado, a tropa do Exército se encontra visivelmente desgastada. No entanto, mesmo a contragosto, não está descartada a possibilidade de os militares fazerem uma nova ocupação até o fim do ano: a retomada das favelas da Rocinha e do Vidigal, em São Conrado, onde seriam necessários cerca de 1.200 homens. A região é prioridade para o governo do Estado por causa da proximidade de hotéis como o Sheraton e o Intercontinental, que devem receber muitos visitantes para a Copa de 2014 e as Olimpíadas, em 2016.
Segundo uma fonte militar, o acerto é possível graças ao grande prestígio que o governador Sérgio Cabral tem junto ao governo federal : “Se o governador for a Brasília e conversar com a presidente Dilma Rousseff, consegue levar o Exército para onde quiser. Não subestime a força de Cabral”, comentou Cesar Leme.
O governador, junto com o secretário de Segurança, José Mariano Beltrame, já conseguiu dobrar o número de policiais militares que sairão do Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Praças (Cefap), que pulou para sete mil homens este ano. Desde janeiro, já foram utilizados 585 PMs nos morros São João (200), no Engenho Novo, Coroa (203), no Catumbi, e Prazeres (182), no Rio Comprido. Ainda restam as UPPs do Morro de São Carlos (250) e as dos complexos do Alemão e da Penha (2.200). Juntas, elas totalizam 27 unidades pacificadoras, favorecendo cerca de 353 mil moradores, de acordo com o Censo de 2000 do IBGE, utilizando 3.035 homens. Sobram 3.965 para os próximos projetos, que, segundo fontes da Secretaria de Segurança, serão também em favelas da capital.
Além da Rocinha, a prioridade é fechar o cinturão de segurança da Tijuca. Neste caso, a ocupação do Morro da Mangueira é fundamental, por causa da proximidade do complexo esportivo do Maracanã. Na região, inclusive, os índices de criminalidade estão altos. De acordo com o Instituto de Segurança Pública (ISP), houve um aumento de mais de 50% nos roubos de veículos nos bairros de São Cristóvão, Caju e Maracanã, por exemplo, pulando de 12 para 28 registros, comparando-se os meses de dezembro de 2010 com janeiro deste ano.
Mas o governador, acostumado a anunciar os locais das UPPs antes da operação para a ocupação das favelas, prefere ainda guardar segredo sobre a escolhida: “Eu não decido isso. A política de pacificação tem o meu aval, o meu apoio e a minha decisão. Mas quais as comunidades, em que momento, de que forma, essa é uma decisão do comando da Segurança Pública, que eu avalizo”, disse Cabral, que continua: “Dizer que a Rocinha não está no mapa não é uma verdade. Ela está no mapa, e nós vamos pacificá-la. Mas quando, como e de que maneira é precipitação falar agora”.
Segundo o governador, é natural que haja uma expectativa em torno de qual será a próxima UPP.
MASSACRE
ONG cobra mais controle de armamento
Para a organização Viva Rio não adianta ter Estatuto do Desarmamento se a lei, em vigor desde 2003, não é cumprida
RIO – De luto por conta da tragédia numa escola do Rio, a organização governamental (ONG) Viva Rio insiste na necessidade de um maior controle das armas em circulação no País por parte do Estado. O Estatuto do Desarmamento, lei federal que regulamenta registro, posse e comercialização de armas de fogo e munição, que entrou em vigor em 2003, estabelece 15 requisitos para que alguém compre uma arma. No entanto, segundo o coordenador do Programa de Controle de Armas do Viva Rio, Antonio Rangel Bandeira, essas exigências não são colocadas em prática. “A lei no Brasil é muito boa, mas não é cumprida. E o acesso à arma é fácil. As lojas não são devidamente controladas pelas autoridades competentes”, informa.
Para o coordenador do Programa de Segurança Humana do Viva Rio e ex-comandante-geral da Polícia militar do Rio de Janeiro, coronel Ubiratan Angelo, a tragédia, embora com imensa repercussão na segurança pública, não poderia ter sido evitada pela ação da polícia ou pela restrição do acesso à escola. “A escola, especialmente a pública, é um espaço democrático e comunitário. O nó do problema reside no controle de armas e munições, nas mãos de civis. Tal acontecido reforça a necessidade da campanha do desarmamento”, afirma.
O pesquisador do Programa de Controle de Armas do Viva Rio, Júlio César Purcena, acrescenta: “Esse massacre mostra, de forma muito trágica e dura, que nosso problema com armas de fogo tem muito mais a ver com questões de controle interno do que externo. Algo em que insistimos há anos. Espero que a partir de agora o debate fuzil-fronteira, seja, no mínimo, dividido com o debate revolver-controle interno”, defende.
O Brasil é campeão absoluto em mortes por arma de fogo: nos últimos anos, o País apresentou uma taxa média de 20 mortes por arma de fogo para cada cem mil habitantes. Dessas mortes, 90% são homicídios, de acordo com dados do Datasus.
CIRCULAÇÃO
Segundo levantamento realizado pelo Viva Rio em parceria com o Ministério da Justiça, existem hoje em circulação no Brasil cerca de 16 milhões de armas de fogo sendo 7,6 milhões ilegais. Deste total, 14 milhões estão nas mãos de civis, segundo pesquisa da ONG Viva Rio, a partir de fontes oficiais.
Ainda de acordo com o estudo, as armas em circulação no Estado do Rio representam 5,7% do total de armas em posse de civis no Brasil sendo que 40% delas são ilegais.
VOO 447
Sem estrutura para a missão
IML do Recife, que pode de novo receber corpos de vítimas do acidente, não faz testes de DNA nem exames de arcada dentária
Wagner Sarmento
A possibilidade de os corpos de vítimas do voo 447 encontrados há uma semana no Oceano Atlântico serem encaminhados novamente a Pernambuco lança luz sobre velhos problemas enfrentados pelo Instituto de Medicina Legal (IML) do Recife, em Santo Amaro, área central da capital. O espaço, que passou, no último mês de março, 18 dias interditado pelo Conselho Regional de Medicina (Cremepe) por não oferecer condições mínimas de trabalho, agoniza. Sua estrutura atual é insuficiente para identificar os despojos achados há exatamente uma semana entre os destroços do Airbus A330 da Air France que caiu em 31 de maio 2009. As retiradas devem ser feitas no máximo dentro de um mês.
Pelo fato de os cadáveres estarem a quase 700 dias mergulhados no mar, é impossível haver impressões digitais preservadas para reconhecimento de identidade por meio de papiloscopia. A identificação só poderá ser feita por meio de exames de arcada dentária ou testes de DNA. O IML recifense, no entanto, não tem laboratório de genética forense para fazer DNA. Além disso, não conta com odontolegistas para identificações odontológicas.
A lacuna não é de hoje. Os 50 corpos resgatados do mar após o desastre aéreo foram encaminhados, por questão geográfica, para o Recife, capital mais próxima da região da queda da aeronave – 1.150 quilômetros. Apesar disso, o IML serviu só como base. Para as análises de DNA e arcada dentária, foi necessária ajuda externa. Os casos de genética forense foram levados ao Instituto Nacional de Identificação (INI), da Polícia Federal (PF), em Brasília. O reconhecimento de identidade por avaliação odontológica só foi possível porque três odontolegistas da Paraíba foram trazidos a Pernambuco. A coordenação ficou a cargo da PF.
Na ocasião, o trabalho – realizado entre 11 de junho e 6 de agosto de 2009 – foi feito por uma força-tarefa integrada por PF, Secretaria de Defesa Social (SDS), Interpol e um representante francês, que atuou apenas como observador. Foram identificados 20 brasileiros, sendo 12 homens e oito mulheres, e 30 estrangeiros, dos quais 13 do sexo masculino e 17 do sexo feminino. Só entre os estrangeiros, 24 identificações ocorreram por exames odontológicos e/ou testes de DNA. Mesmo os corpos reconhecidos por papiloscopia tiveram confirmação através de DNA.
O laboratório de genética forense é uma promessa que atravessa gestões da SDS. Quando o acidente que matou 228 pessoas completou um ano, em 31 de maio do ano passado, o Jornal do Commercio questionou o gerente de Polícia Científica, Francisco Sarmento, sobre a obra. A resposta foi que o governo estadual tinha projeto pronto para instalação de um espaço para exames de DNA, orçado em R$ 2,5 milhões, mas ainda não havia aprovação de financiamento da obra pela Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp), órgão vinculado ao Ministério da Justiça.
Quase um ano depois, a situação é a mesma. Porém, diante da recente crise no IML, o secretário Wilson Damázio prometeu, em nota enviada pela SDS, a construção de um laboratório de genética forense. Também em comunicado, o secretário-executivo de Gestão Integrada da SDS, Alciomar Goersch, informou que “o projeto arquitetônico está pronto”. O próximo passo, diz o comunicado enviado por e-mail, é a fase de licitação, que será lançada através de edital, com prazo de 30 dias úteis.
A SDS explica que o investimento total da obra será de R$ 3,1 milhões, bancados pelo governo estadual, não mais pela Senasp. O comunicado detalha que R$ 1,5 milhão serão para o prédio, incluindo mobílias e climatização. Outros R$ 1,6 milhão serão usados para a compra de equipamentos. Ainda conforme a nota da assessoria de imprensa, o laboratório será construído numa área de 996 metros quadrados, no pátio externo da sede da SDS.
LACUNA
O presidente da Associação Pernambucana dos Médicos Legistas (Apemol), Carlos Medeiros, afirma que o voo 447 expõe um problema maior do IML pernambucano, cuja precariedade dificulta sobretudo investigações policiais. “Sempre se fala nesse laboratório de genética forense, mas isso não existe na prática. É uma coisa que é fundamental, indispensável para um serviço sério e moderno. Essa ausência mostra que temos uma estrutura sucateada e que o descaso continua”, critica.
Medeiros diz que Pernambuco nunca teve concurso para odontolegista, cargo que não existe no Estado. “Não existe, mas deveria existir. Trata-se de um profissional importante para o trabalho de perícia, para casos em que se pede identificação de ossada. É muito ruim o Estado ser requisitado, como no caso do voo 447, e ter que pedir ajuda à Paraíba, um Estado que mesmo muito menor e com mais restrições orçamentárias tem um IML com uma melhor estrutura”, compara.
O perito federal Carlos Eduardo Palhares, da PF de Brasília, que coordenou a força-tarefa em Pernambuco para a identificação dos primeiros 50 corpos recolhidos dos destroços, explica que, apesar das deficiências, o IML do Recife seria o melhor lugar para abrigar os restos mortais a serem retirados do Oceano Atlântico em até um mês. “A água do mar tende a conservar os corpos, mas quando você os retira a tendência é eles se decomporem mais rápido”, observa. Na remoção anterior, a Aeronáutica e a Marinha do Brasil, que participaram do resgate, foram orientadas a não mexer nos cadáveres nem retirar suas roupas para não prejudicar a perícia. Palhares acrescenta que, por jurisdição, a identificação deve ficar a cargo do governo brasileiro, restando saber em que Estado.
A Associação dos Familiares das Vítimas do Voo 447 (AFVV447), entidade que reúne parentes brasileiros de vítimas do desastre, quer que o governo brasileiro participe da retirada dos destroços e corpos. O pleito foi levado pelo presidente do organismo, Nelson Marinho, em audiência anteontem com o ministro da Defesa, Nelson Jobim, em Brasília. Marinho também pede que os restos mortais sejam trazidos para Pernambuco. Jobim disse, porém, que o envio dos corpos para o Recife dependeria do governo francês.
O exemplo a ser seguido mora ao lado
Não precisa ir muito longe para saber o quanto atrasado Pernambuco está no campo da medicina legal. Basta percorrer 113 quilômetros, até João Pessoa, para atestar que o Recife precisa avançar muito numa área tida como fundamental para investigações policiais.
Mesmo tendo um Produto Interno Bruto (PIB) quase quatro vezes inferior ao pernambucano e uma população mais de duas vezes menor, a Paraíba conta, desde o início de 2004, com um laboratório de genética forense, ligado à Gerência Operacional de Análise em DNA, da Polícia Científica.
Em vez de esperar ajuda da Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp), do governo federal, o governo paraibano investiu R$ 1 milhão para montar um pequeno laboratório, mas que já supria parte da demanda do Estado. Com o passar do tempo, o que era incipiente cresceu e virou referência regional.
“Somos pioneiros no Nordeste. Começamos com recursos próprios, com nossas próprias pernas, apenas engatinhando. No princípio, nem sequer tínhamos sequenciador. Fazíamos a análise no manual, por meio de eletroforese com gel”, lembra a gerente-executiva de Laboratório Forense da Paraíba, Maria do Carmo de Azevedo Veloso, em entrevista por telefone.
“Alguns meses depois, quando a Senasp começou a investir nisso, deu prioridade a quem já tinha laboratórios e aí fomos beneficiados com recursos”, completou Maria do Carmo.
DEMANDA
Hoje, o núcleo forense, que fica no Instituto de Medicina Legal (IML) de João Pessoa, realiza entre 12 e 15 exames de DNA por mês. Além disso, ainda faz testes solicitados por Pernambuco.
“Temos uma parceria. Não cobramos pela ajuda. Eles trazem apenas os insumos”, afirma Maria do Carmo, citando que Pernambuco tem três peritos criminais com formação em genética forense. A Paraíba tem oito. Outro Estado ao qual Pernambuco recorre para fazer exames de DNA é a Bahia.
Em 31 de maio do ano passado, quando o acidente com o voo 447 completou um ano, Pernambuco tinha 105 casos policiais pendentes, à espera de exames de DNA. A Secretaria de Defesa Social (SDS) não repassou a pendência atual.
Atualmente, 17 Estados brasileiros têm laboratórios de genética forense. No Nordeste, Paraíba, Bahia e Ceará contam com a estrutura. A Secretaria de Defesa Social (SDS) informou que o início das obras do laboratório de genética forense de Pernambuco deve ocorrer em oito meses.
MEMÓRIA
A história das presas políticas do Bom Pastor
Considerado um “paraíso”, perto dos temidos porões do Dops, presídio recifense abrigou 24 presas políticas durante o regime militar no País
Débora Duque
Com capacidade para 150 detentas, o Presídio Feminino do Recife – antigo Bom Pastor –, localizado no bairro de Engenho do Meio, acomoda, hoje, 651 mulheres que cumprem pena por crimes como roubos, assaltos, assassinatos ou tráfico de drogas. Na década de 70, esse mesmo cenário foi o destino de 24 presas políticas (veja quadro) vindas de diferentes cantos do País sob a acusação de terem praticado “atividades subversivas” contra o regime militar (1964-1985). Torturadas ao longo de uma dolorosa peregrinação pelos porões de quartéis espalhados em todo território nacional, as antigas militantes terminaram encontrando no Bom Pastor um ambiente bem menos hostil do que suas expectativas mais otimistas poderiam indicar. Uma espécie de “paraíso” – se é que ele poderia existir naquele contexto de repressão – em meio ao caos.
Do grupo que ficou preso no Recife apenas seis eram pernambucanas. As demais vinham de outros lugares do Nordeste – em especial, do Ceará – ou de Estados como Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Minas Gerais. Eram jovens de 18 a 24 anos que militavam em organizações de esquerda – a maioria ligada aos movimentos estudantis – e chegaram a Pernambuco na clandestinidade. Ao serem presas, a maior parte das “meninas” seguiu para o Departamento de Ordem Política e Social (Dops), localizado na Rua da Aurora. Ali, se juntavam aos demais presos políticos, sofrendo sessões de torturas e maus-tratos diários
Por isso, embora não significasse a liberdade plena, a transferência para o Bom Pastor é descrita como um momento de “alívio” por algumas das ex-presas. Ao invés de guardas armados, eram as freiras que tomavam conta do presídio recifense. A troca, por si só, já se refletia numa rotina mais “light” em relação aos outros locais, como a antiga Casa de Detenção do Recife, onde hoje funciona a Casa da Cultura. Aos militares, cabia apenas a função de vigiar a área externa do Bom Pastor. Com passagem pelo Dops do Rio de Janeiro e pelo presídio de segurança máxima de Bangu, a pernambucana Dulce Pandolfi, militante da Aliança Libertadora Nacional (ALN), foi uma das testemunhas deste contraste. “A minha chegada foi muito impactante, não tinha ideia que pudesse ir para um lugar assim. Parecia um convento. Dentro de uma situação de calamidade, as condições eram melhores do que as experiências anteriores, mas vivíamos num clima de incerteza”, relata Dulce. Antes de aterrissar no Bom Pastor, ela vivenciou uma situação-limite ao ser utilizada como exemplo em aulas de tortura a oficiais cariocas.
No início, as recém-chegadas eram instaladas na mesma ala que as presas comuns. Posteriormente, foram transferidas para o casarão anexo ao presídio, que hoje funciona como um depósito. No dia a dia, elas dividiam as tarefas domésticas: algumas cozinhavam, outras lavavam ou limpavam as áreas coletivas. Nas horas de lazer, jogavam vôlei, tocavam violão, ouviam música ou faziam grupos de leitura a partir dos livros trazidos por familiares e amigos durante os domingos de visita. “Tentávamos nos estruturar. Independentemente de qualquer coisa. Éramos pessoas traumatizadas, já tínhamos passado por uma barra muito pesada e não sabíamos quanto tempo iríamos ficar ali”, assinala Dulce.
Alguns acontecimentos de caráter extraordinário também ajudavam a transformar a rotina das mulheres em algo mais próximo da “normalidade”, como o nascimento e o batizado do filho de Helena Serra Azul (leia matéria na página 11) ou o casamento de Yara Falcón com o seu noivo, que também era preso político. Com permissão da junta militar, a cerimônia entre os dois “subversivos” aconteceu na capela do Bom Pastor e foi, inclusive, noticiada no jornal, em agosto de 1970. “Todas ajudaram nos preparativos. Enquanto as meninas produziram meu cabelo e meu vestido, as freiras cuidaram dos doces e do bolo”, recorda Yara.
Mas, nem tudo eram flores no Bom Pastor. Mesmo longe dos interrogatórios e das sessões de tortura, as presas políticas não estavam livres da atmosfera opressiva do regime. A solidariedade das freiras não era suficiente para ofuscar, por exemplo, o modo autoritário – e, por vezes, agressivo – com que os visitantes eram revistados pelos militares. Ou ainda quando estes invadiam o presídio e restringiam o banho de sol ou qualquer comunicação com o mundo externo por alguns dias – como aconteceu quando duas delas foram soltas em troca da libertação do embaixador suíço (ver na página 11). “Ali eu percebi que não tínhamos segurança de nada. Estávamos vulneráveis. Toda aquela tranquilidade era uma ilusão. As freirinhas eram maravilhosas, mas não poderiam fazer nada por nós. Presídio é presídio. Nossas liberdades estavam cerceadas”, conclui Yara.
Saga será contada em documentário
A saga das 24 presas políticas do Bom Pastor está sendo transformada em um documentário de aproximadamente 20 minutos, com lançamento previsto para 17 de junho deste ano. Dirigido pela pernambucana Tuca Siqueira, o filme integra o projeto Marcas da Memória, capitaneado pela Comissão da Anistia do Ministério da Justiça, que destinou R$ 150 mil à iniciativa. Na primeira quinzena de março, 18 daquelas mulheres voltaram ao Recife para gravação de cenas e depoimentos. Para algumas, o retorno significou o reencontro com as antigas companheiras de presídio que não se viam há mais de três décadas. Para outras, a oportunidade de conhecer, de fato, colegas que, em diferentes períodos, vivenciaram história semelhante.
No ano passado, nove delas vieram ao Estado para prestigiar uma homenagem promovida pela Secretaria de Direitos Humanos do Recife. Na ocasião, foi instalada uma placa no presídio Bom Pastor, contendo o nome de todas as ex-presas políticas. Atualmente, apenas Lília Gondim vive em Pernambuco. O trabalho de contactar todas elas e trazê-las à capital pernambucana ficou a cargo de Lília juntamente com a colega Yara Falcón, que reside em Brasília, mas encontra-se no Estado desde janeiro para dar andamento ao documentário. Do grupo de 24 mulheres, três já faleceram (Áurea Bezerra, Helena Quintela e Selma Bandeira) e outras três não puderam participar das filmagens por motivos de saúde (Maria Aparecida dos Santos, Maria do Carmo Tomás e Nancy Mangabeira, irmã do ex-ministro da Secretaria de Assuntos Estratégicos do governo Lula, Mangabeira Unger).
Durante quatro dias, elas recontaram suas histórias de frente para as câmeras e gravaram cenas na praia, no Monumento Tortura Nunca Mais (na Rua da Aurora) e, claro, no Bom Pastor, onde se depararam com uma situação bastante diferente da que vivenciaram 40 anos atrás. “Foi um impacto muito grande ter voltado lá. Essa condição atual do Bom Pastor, que não é só dele, é assombrosa em relação às nossas lembranças da época. As condições das presas são dantescas”, relata Ana Fonseca, que hoje coordena o Programa de Erradicação da Miséria do governo federal.
O documentário, que se encontra na fase de decupagem e edição, deverá ser lançado também em DVD. Sem fugir do caráter didático, o formato, porém, não deve obedecer ao padrão tradicional de documentário cinematográfico. Temos uma licença poética, digamos assim. Não será um documentário clássico, mas a proposta é fazer com que ele possa circular não apenas por festivais, mas chegue também às salas de aula, em associações de trabalhadores e até em lugares mais distantes, explica Tuca Siqueira. Em sua avaliação, o filme pode vir a fortalecer, inclusive, o debate sobre a instauração da Comissão da Verdade e a abertura dos arquivos militares. Em junho, as protagonistas deverão voltar ao Recife para prestigiar o lançamento.
HISTÓRIA
Gravidez em pleno cárcere
Helena Serra Azul estava grávida de dois meses ao ser presa. Apesar das ameaças constantes de aborto, conseguiu ter seu filho
Débora Duque
Entre as 24 presas políticas que passaram pelo presídio Bom Pastor entre os anos de 69 e 79, a história de uma delas merece um capítulo à parte. Isso porque, aos 19 anos, a cearense e militante da Ação Popular (AP) Helena Serra Azul ingressou no presídio numa condição muito especial: a de mãe. A gravidez não planejada bateu à sua porta apenas dois meses antes de ser presa pelos militares junto com o marido, na Mata Sul pernambucana, onde desenvolvia atividades políticas voltadas para os camponeses. A partir de então, Helena precisou enfrentar um teste de sobrevivência dupla ao ambiente insalubre do Dops, às ameaças constantes de aborto e à ausência de meios para criar o filho “ Manoel ou “calanguinho”, como ficou conhecido “ durante a detenção.
Ao engravidar em plena militância política, ela contrariou sem arrependimentos, diz Helena “ uma das orientações dadas por sua organização. Mas, nos porões da ditadura, o fator contribuiu para que fosse poupada de torturas físicas, embora não do terror psicológico. Isso me protegeu até certo ponto, porque ficavam com receio de que eu abortasse. Mas não era por sensibilidade deles. Em vários momentos fui ameaçada de aborto. Eles me interrogavam à noite, não me deixavam dormir e torturavam o Chico, meu marido, na minha frente, relembra.
Ela conta que passou 40 dias sem comunicação com o mundo externo antes de ser transferida para o Bom Pastor, o que só foi possível graças à interferência de dom Penido, abade do Mosteiro de São Bento. No presídio, conviveu mais seis meses com as náuseas típicas de qualquer gravidez até levar uma queda no oitavo mês de gestação e ser hospitalizada na maternidade de Casa Amarela, sob escolta policial. Ali, Manoel, o calanguinho”, nasceu saudável, apesar das intercorrências. Ao receber alta, Helena ganhou um agrado da diretora do Bom Pastor que a levou para visitar o marido “ que não via há seis meses “ na prisão.
De volta ao cárcere, Helena lembra que foi recebida com festa pelas colegas. Eu cheguei com ele no colo. E o bercinho que elas fizeram era a coisa mais linda, conta. Durante oito meses, o calanguinho foi criado pelo coletivo de mulheres, as tias por ocasião. No aniversário de um mês, todas organizaram o batizado do pequeno. “Foi uma festa dentro do presídio porque foi nesse mesmo dia chegaram outras presas”, recorda. O pai, que também estava preso, não obteve permissão para prestigiar o momento. Ele só via o filho a cada 15 dias, quando Helena o visitava, vigiada pela guarda.
Mas o rebento começou a sofrer crises de convulsão dentro do presídio e foi obrigado a morar com a avó, em Fortaleza, já que os pais não possuíam parentes no Recife. Apesar das visitas esporádicas, Helena chegou a passar seis meses sem ver o filho até conseguir a redução de sua pena (ela foi incriminada por distribuição de panfletos e formação de partidos) de cinco para dois anos. Em 1972, ela deixou o Bom Pastor e foi ao encontro de “calanguinho” e do marido, que também havia conquistado a liberdade. Tempos depois, o casal chegou a ser preso, novamente, em Fortaleza, durante 15 dias. “Eles invadiram a casa, puxaram arma para minha sogra e saíram me arrastando pelo chão com o Manoel assistindo a tudo. Hoje, ele não lembra mais disso, mas na época teve muito pesadelos com essa cena”, conta Helena.
Quando foi solta pela segunda vez, ela deu por encerrada sua militância naquele período. Com o histórico “sujo”, a marcação cerrada dos militares limitava a liberdade, recém-conquistada. Assim como os demais ex-presos políticos, ela encontrou dificuldades para retomar uma rotina normal até a promulgação da Lei da Anistia, em 79. “Em nenhum momento, eu perdi a esperança. Acho que tudo valeu a pena. Nossa geração sofreu muito para que conseguíssemos alcançar a liberdade que temos hoje”, diz Helena. Atualmente, ela é professora do curso de Medicina da Universidade Estadual do Ceará e filiada ao PCdoB.
Dom Penido, o elo com o mundo exterior
Na missão de tornar a vida carcerária o mais aconchegante possível, uma figura se sobressai nas lembranças das ex-presas políticas do Bom Pastor. Abade do mosteiro de São Bento, em Olinda, dom Basílio Penido utilizou sua influência de líder máximo da ordem beneditina no Estado “ cargo que conquistou em 1961 “ para aliviar o sofrimento de alguns presos políticos durante o período de repressão. Sem ligações diretas com as organizações de esquerda que combatiam o regime, o monge, natural do Rio de Janeiro, adotou uma postura diplomática em relação aos militares, o que terminou viabilizando seu livre trânsito pelos presídios do Recife.
Ao Bom Pastor, além do conforto espiritual, dom Penido também prestava ajuda material e trazia informações e cartas de parentes e outros presos políticos. Funcionava como um elo entre as mulheres e o mundo externo. “Ele era um aliado. Tinha uma sensibilidade muito forte pela questão dos direitos humanos. Entrava fora do dia de visita, trazia comida especial, vinho, tudo”, conta Lília Galleti, uma das ex-presas. Presença constante, o monge participou dos principais “acontecimentos” do presídio feminino, como o casamento de Yara Falcón e o batizado de Manoel, “o calanguinho”, filho de Helena Serra Azul.
Porém, sua atuação nos bastidores das prisões lhe rendeu alguns desafetos entre os detratores do governo militar. A dom Penido, bastante ligado a Dom Hélder Câmara, era cobrada uma postura mais incisiva. O professor de História da UFPE Severino Vicente alerta que o alto prestígio do abade nos meios militares não deve ser atribuído apenas à posição ocupada por ele na hierarquia religiosa, mas também à sua origem social. O monge chegou a se formar em medicina antes de ingressar na vida religiosa e vinha de uma família de classe média alta do Rio. “Era um intelectual de formação humanista. Ele vivia repetindo a frase: às vezes, é preciso dar um passo para trás, para dar dois para frente depois. Foi um diplomata que agiu nas sombras do regime”, avalia o professor.
Presas são trocadas por embaixador
Em 7 de dezembro de 1970, o seqüestro do embaixador suíço Giovanni Enrico Buche no Rio de Janeiro, alterou a rotina das presas políticas do Bom Pastor. A ação, arquitetada pela Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), sob a liderança do ex-capitão do Exército Carlos Lamarca, serviu como moeda de troca para a libertação de 70 presos políticos do País. Nesta lista, contavam os nomes de Vera Rocha e Nancy Mangabeira Unger, militantes do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR) que haviam sido presas no Recife.
Integrantes da luta armada contra o regime, ambas chegaram a trocar tiros com os policiais antes de serem levadas ao Dops. A reação provocou ferimentos graves em Nancy, que precisou passar uma longa temporada no hospital, antes de ser transferida para o presídio. Ela chegou ter o dedo polegar amputado e submeteu-se a procedimentos cirúrgicos de alta complexidade, razão pela qual viveu poucos meses no Bom Pastor.
Com a divulgação da lista de pessoas que deveriam ser soltas em troca do embaixador, o regime se apressou em ordenar o isolamento das duas no presídio, sem expor quaisquer justificativas. “Eles cortaram todo tipo de contato com as outras presas. Paramos de receber visitas e não tínhamos mais permissão para ouvir rádio. A gente desconfiou que estava acontecendo alguma coisa, mas não sabíamos o quê. Até que um dia eles nos levaram de volta ao Dops e aí foi quando ficamos sabendo do seqüestro”, relata Vera. Na primeira versão, o documento publicado pelos sequestradores incluía também o nome de Dulce Pandolfi, que na época estava detida no Rio de Janeiro. Sua libertação foi vetada pelo governo e ela terminou desembarcando tempos depois no Bom Pastor.
A negociação pela libertação do diplomata suíço durou quase 40 dias, período em que Vera e Nancy aguardaram no Dops sob novas torturas psicológicas. “Um belo dia, eles mandaram a gente arrumar nossas coisas e botaram a gente dentro de um carro. Nunca achei o Recife tão lindo. Sabia que estávamos rumando à liberdade”, relembra Vera. De avião, seguiram para o aeroporto do Galeão, no Rio, onde encontraram os demais presos políticos. “A gente começou a perceber que havia uma movimentação para a gente sair do País. Não sabíamos nem como, nem pra onde. Antes de embarcarmos, os militares fizeram questão de aplicar um último castigo, servindo uma refeição estragada que provocou diarréia em todos nós”, assinala
Escoltados por agentes federais, eles voaram em direção ao Chile “ na época, ainda governado por Salvador Allende. De acordo com Vera, os policiais não desperdiçaram ameaças de atirá-los ao mar durante o trajeto, antecipando um dos métodos que viria a ser usado, pouco tempo depois, na Operação Condor. Apesar de bem acolhidos no Chile, os exilados fora obrigados a partir dois anos depois, quando o general Augusto Pinochet assumiu o poder em 1973. Ali, era apenas o início de uma peregrinação que só terminaria em 79, com a Lei da Anistia.
AJUDA HUMANITÁRIA
Jobim quer Exército em obras no Haiti
Para o ministro Nelson Jobim, Forças Armadas deveriam participar também da reconstrução do país
Gilvan Oliveira
O Ministério da Defesa aguarda a posse do presidente eleito do Haiti, o cantor Michel Martelly, agendada para 14 de maio, para definir os rumos das Forças Armadas brasileiras na missão das Nações Unidas para a estabilização do País. Mas, em passagem pelo Recife na última sexta-feira, o ministro Nelson Jobim defendeu a manutenção da atuação militar brasileira com a ampliação do seu foco. Além de cuidar das questões estritamente militares, como garantir a ordem e segurança públicas, o Exército deveria assumir obras de reconstrução da infraestrutura do País, para propiciar o desenvolvimento da atividade econômica local.
“Defendemos que o Brasil deva ter não só ação de manutenção de paz, mas também da criação da paz. Ou seja, trabalhar pelo desenvolvimento do País (Haiti), o que vai propiciar nossa saída de lá”, disse Jobim, logo após a cerimônia de troca do Comando Militar do Nordeste (CMNE). Os recursos para reconstruções viriam de um fundo internacional específico para a reconstrução do País, devastado por um terremoto em janeiro de 2010. Aproximadamente 250 mil pessoas morreram por conta do desastre.
No contingente brasileiro no Haiti, há uma companhia de engenharia que poderia executar o projeto de construção de uma pequena hidrelétrica próxima à capital, Porto Príncipe, além de obras como estradas.
Essa companhia já realizou trabalhos como retirada de entulhos das ruas após o terremoto, terraplenagem de ruas e manutenção do asfalto de vias públicas. Mas para empreendimentos de grande porte, caso da hidrelétrica, é necessário entendimento entre os governos do Brasil e do Haiti para executá-los.
O objetivo com a energia gerada por esta unidade é alimentar Porto Príncipe e viabilizar a instalação de novos empreendimentos na cidade. Jobim disse que os governos do Brasil e dos Estados Unidos já haviam iniciado entendimentos para viabilizar a instalação de indústrias têxteis na cidade. Criada em 2004, a missão de estabilização do Haiti é comandada pelo Brasil e conta com 12.300 militares de 20 países dos quais 2.230 são brasileiros. Deste total, 1.048 homens são oriundos do CMNE.
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