MASSACRE EM REALENGO
Adeus às armas e às munições
Viva Rio quer que o governo pague também por balas na nova campanha do desarmamento
Jailton de Carvalho
AONG Viva Rio vai sugerir ao governo federal que pague pelas munições, e não apenas pelas armas, a serem recolhidas na campanha do desarmamento deste ano. A proposta será detalhada na reunião de amanhã, às 15h, entre o alto escalão do Ministério da Justiça e representantes de ONGs interessadas no desarmamento. O encontro foi convocado em caráter emergencial pelo ministro José Eduardo Cardozo, um dia depois do massacre de 12 crianças em Realengo, no Rio. A campanha, que estava marcada para junho, será antecipada. No encontro, o governo também deverá apresentar várias medidas para reforçar o controle das armas. Uma das ideias é incluir chips nas armas ainda nas fábricas.
O Viva Rio acredita que a campanha deste ano precisa ter participação da sociedade civil para dar resultado. Nos últimos anos, a coleta ficou apenas nas mãos do governo e o número de armas recolhidas foi pequeno. Entre 2004 e 2005, ONGs, igrejas e as polícias recolheram 459 mil armas. Na campanha de 2008 e 2009, que teve a participação apenas da Polícia Federal, o governo retirou do mercado apenas 30 mil armas. Para Antônio Rangel, um dos coordenadores do Viva Rio, o fracasso se explica porque muita gente ainda tem receio de entregar armas diretamente à polícia:
- As pessoas precisam ser convencidas a entregar as armas, e quem faz isso são padres, pastores, médicos. A campanha tem que envolver a sociedade civil - afirmou.
Crime antecipou a campanha
O ministro também está convencido de que a sociedade civil precisa participar. A proposta inicial era transformar a campanha pelo desarmamento em política de Estado, como as vacinações periódicas promovidas pelo Ministério da Saúde. A campanha seria lançada em junho, um mês sem grandes eventos como carnaval ou eleições. Mas, com a massacre de quinta-feira, Cardozo resolveu se antecipar. Auxiliares do ministro e ONGs já têm de estudos sobre o assunto.
- A campanha seria em junho. Mas a tragédia teve forte impacto. Vamos antecipar o cronograma - disse Cardozo.
A data da campanha e das novas medidas deverão ser acertadas na reunião de amanhã. Para Rangel, é importante que o governo pague pelas munições a serem recolhidas. Nas campanhas anteriores, a recompensa se limitava às armas. Segundo o representante da Viva Rio, o recolhimento de munições, e não apenas de armas, pode ajudar na redução da violência. O pagamento por munições teria sido uma das razões do sucesso da campanha de desarmamento na Argentina.
A sugestão é que o governo pague alguns centavos por bala ou cartucho devolvido. Os centavos seriam convertidos num valor expressivo em caso de devolução de grande quantidade de munição. Rangel também está acertando a participação da organização maçônica Grande Oriente do Brasil (GOB) no movimento. Seria uma adesão de peso. O GOB tem duas mil lojas no país e daria enorme capilaridade a rede de captação de armas.
Técnicos do ministério também estão buscando alternativas para restringir o número de armas em poder de civis. Cardozo estuda enviar um projeto de lei ao Congresso propondo a inclusão obrigatória de chips em armamentos. Ainda não há consenso se os chips seriam incluídos em armas de civis e militares. O ministro deverá ouvir o Ministério da Defesa sobre o assunto.
- Temos também que apertar a concessão do porte - disse o ministro da Justiça.
Os chips são de baixo custo e facilitariam a localização de armas extraviadas. Cardozo pretende também endurecer as regras de concessão de porte que, desde a aprovação do Estatuto do Desarmamento, vêm sendo atacadas pela bancada da bala no Congresso Nacional. Para ONGs e o governo a restrição à circulação de armas se tornou ainda mais necessária depois da chacina em Realengo.
- As pessoas têm que entender que, quanto menor o número de armas em circulação, menor é o risco de assassinatos e tragédias como essa - disse Cardozo.
Atualmente estão em tramitação no Congresso propostas de concessão de porte de armas para 49 categorias profissionais. Parlamentares estão sugerindo a liberação de armas para taxistas, motoristas de caminhão e advogados, entre outros. O governo entende que pode se contrapor a esse movimento e sugerir regras mais duras para a liberação do porte. Segundo Rangel, o lobby das armas é forte, mas não invencível:
- Alguns países, como Reino Unido e Canadá, conseguiram mudar suas legislações em função de tragédias como essa do Rio.
Pelos estudos da Viva Rio, as campanhas pelo desarmamento reduziram em 11% o número de homicídios entre 2005 e 2010.
MERVAL PEREIRA
Em xeque
A presidente Dilma Rousseff, que tem como objetivo político fixar sua imagemcomo administradora competente, está disposta a enquadrar governadores e prefeitos das cidades envolvidas na Copa do Mundo para garantir o cumprimento do organograma da Matriz de Responsabilidades acertada entre os três níveis de governo para a realização da Copa do Mundo de futebol em 2014.
Todos os 54 projetos que compõem o conjunto de obras da Copa do Mundo foram, sem exceção, reprogramados em relação ao que ficara definido em janeiro do ano passado. No final do ano passado, metade desses projetos sofreu novos acertos, abrangendo 12 dos 17 entes federativos neles envolvidos. Apenas cinco deles mantiveram o cronograma combinado no final de 2010: municípios de Belo Horizonte, Curitiba, Recife e Rio de Janeiro, e estado de São Paulo. Para ressaltar seu empenho, é provável que a presidente Dilma anuncie, na volta de sua viagem à China, a permissão para que o terceiro aeroporto de São Paulo, localizado em Caieras, seja construído e administrado pela iniciativa privada.
Essa decisão já era para ter sido tomada no final do governo Lula, mas opresidente refugou em assinar o decreto para não perder um tema de
campanha eleitoral, a oposição entre o público e o privado na administração do país. A presidente reunirá os responsáveis pelos projetos e anunciará que aprestação de contas sobre a evolução das obras será feita publicamente, com aidentificação dos responsáveis por eventuais atrasos.
O primeiro semestre deste ano — cuja metade já se foi — éfundamental para marcar umnovo ritmo nas obras, pois estão concentrados neste ano 70% das obras e 85% dos investimentos totais. Os projetos de mobilidade urbana, que são os principais legados que as cidades receberão depois dos jogos da Copa, necessitamde financiamentos da Caixa Econômica, mas há problemas burocráticos emperrando a liberação, desde oenvio de documentos para a própria Caixa ou para a Secretaria Nacional do Tesouro, como também demora na resposta do SNT . Recife e Brasília, por exemplo, não enviaram no prazo documentos pedidos pela Caixa. Já Fortaleza e Natal aguardam uma resposta da Secretaria do Tesouro. O estado do Amazonas está tentando uma liminar no Supremo para se livrar do enquadramento da Lei de Responsabilidade Fiscal, que o impede de financiar os projetos da prefeitura de Manaus. Há diversos projetos de transportes emperrados em vários estados. EmBrasília, o VL T (Veículo Leve sobreTrilhos) está sob embargo judicial, com seu processo de licitação questionado. Estudase realizar outra licitação ou até mesmo redefinir o tipo de transporte a ser implantado.
Em Recife, os burocratas ainda discutem se devem adotar o BRT(corredor de ônibus rápido) ou monotrilho. Em São Paulo, o monotrilho aguarda uma decisão do Ministério Público, que quer suspender a licitação. Em Cuiabá, o culpado pelo atraso é o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), do Ministério dos Transportes, que temq ue fazer obras para que os corredores de ônibus sejam implantados.
E em Manaus a licitação para o monotrilho não teve concorrentes por duas vezes, ea prefeitura está sugerindo substituí-lo por corredores de ônibus. Os atrasos são tão acentuados que, mesmo cumprindo todos os compromissos, cerca de 30% das obras, que representam metade do valor total, serão entregues somente no segundo semestre de 2013. Com relação aos aeroportos, do total de 25 empreendimentos, nada menos que
22 estão com atraso em relação ao primeiro cronograma, e pelo menos oito desses representam algum risco para a Copa de 2014. O plano proposto pela Infraero para reduzir os problemas dos aeroportos tem prazos que não são factíveis, de acordo com a análise do Ministério dos Esportes. Em Belo Horizonte, por exemplo, a previsão para outubro de 2013 para o fim das obras na pista, no pátio e no terminal de passageiros do Aeroporto de Confins tem a possibilidade de só se concretizar em março de 2014. O plano da Infraero para tentar atingir os objetivos iniciais prevê aredução do tempo das obras em cinco meses em média, o que certamente implicará redução de qualidade.
Em Manaus, Brasília, Porto Alegre e São Paulo (Viracopos), as mudanças nos terminais de passageiros ainda estão em planejamento ou em projetos ainda sem licitação, e é possível que tanto Viracopos quanto ode Manaus só fiquem prontos depois da Copa. Mesmo com as obras pre-
vistas, alguns dos nossos principais aeroportos estarão funcionando além de suas capacidades, o que torna quase uma certeza problemas na recepção dos turistas.Confins, em Belo Horizonte, estará com 153% de saturação; Brasília eFortaleza, com118%;Guarulhos, emSão Paulo, e Cuiabá, com 111%; e Porto Alegre, com 110%. Nenhum dos sete portos que receberão investimentos para a Copa teve obra iniciada, mas já há reprogramação prevendo aconclusão para 2014, como é o caso do porto do Rio de Janeiro, cujas obras estão previstas para terminarem em março do ano da Copa. O porto de Manaus está em meio a uma disputa trabalhista, pois é uma concessão, eé possível que seja inviável chegar-se a um acordo para investimentos.
O porto de Fortaleza terá seu edital de obras lançado apenas em setembro deste ano, por dificuldades na obtenção de licenças ambientais. Como se vê, o que está em xeque não é apenas a capacidade de opaís realizar os dois maiores eventos esportivos do planeta (Copa do Mundo e Olimpíadas). Muito além do aspecto meramente esportivo, estarão expostas ao mundo as possibilidades de um país moderno e progressista, que se pretende um dos expoentes do novo mundo multipolar , em contraposição aos nossos vícios e mazelas terceiro-mundistas.
ANCELMO GOIS
No mais
Segundo o ministro Nelson Jobim, "no mundo todo", aeroportos fecham, como o Galeão-Tom Jobim, quinta, quando uma furadeira atingiu um cano de gás.
O mesmo argumento foi usado pelo presidente da Ligth, Jerson Kelman, para quem é comum, "no mundo todo", bueiros explodirem. Deve ser a tal da globalização. Ah, bom!
TECNOLOGIA
O homem que violou o embargo da ONU ao Irã
Condenado nos EUA por vender tecnologia proibida, engenheiro brasileiro vive em liberdade condicional na Tijuca
José Casado
A timidez sumia à medida que decotava a bela lasanha, rumo ao fundo do prato. Entre garfadas, emergia a voz treinada de um professor de equações, cuja cabeça agora estava dividida entre dois prazeres: a massa italiana levemente gratinada e um breve discurso sobre o colapso por compressão (flambagem) de estruturas de metal e concreto plantadas na voragem dos oceanos, a mais de 1.500 metros metros de profundidade.
Parou para ajeitar os óculos, conferiu se a camisa xadrez continuava imaculada de molho, e retomou com escárnio:
- Mas o que isso tem a ver com o fato de eu ser terrorista?
Para o governo americano, Nelson Szilard Galgoul, 62 anos, engenheiro e empresário carioca com uma centena de empregados, reconhecido analista de cálculo de grandes estruturas submarinas e professor em duas universidades federais (UFRJ e UFF), encarna uma ameaça à segurança nacional dos Estados Unidos.
Em 2008 ele foi condenado a quatro anos de prisão (além de multa de US$202 mil, equivalentes a R$364 mil) por vender tecnologia proibida para o Irã - país que há década e meia está sob embargo econômico e militar internacional por causa do seu programa nuclear. Foi uma das maiores punições impostas pela Justiça dos EUA a um executivo por violação das leis de controle de exportação.
Galgoul passou 390 dias em presídios americanos
Após 18 meses em presídios do Texas e da Lousiana, Galgoul vive em liberdade condicional nas ruas da Tijuca, na Zona Norte do Rio.
- Nenhuma prisão gera correção, só revolta - recita, enquanto garfa a última fatia de massa. Degusta como se tentasse limpar da memória o sabor do bolo de carne, do tipo "coma por seu próprio risco", ocasionalmente servido no jantar da prisão. - Espantosamente - continua - os americanos são tão incapazes de lidar com outros povos que geram ódio. Acham que esse ódio é por inveja. Só sendo cego para não enxergar as razões.
O ressentimento tem raízes profundas, muito além da experiência de 390 dias trancafiado em penitenciárias federais (oito meses em Seagoville, no Texas, e mais cinco meses em Nova Orleans, na Louisiana), sob um regulamento que não permite visita conjugal e impõe cama feita "ao estilo militar" às 7h30m de cada manhã - com "sapatos alinhados sob o leito, bicos apontados para fora".
Galgoul é um cidadão com passaporte americano que, por acaso, nasceu na Tijuca. Filho de Leon, missionário da Igreja Batista da Louisiana, e de Carolina, judia cuja família escapou do nazismo na Hungria. Passou a infância nos EUA, e a adolescência, estudando a Bíblia em povoados do Cerrado brasileiro. De volta à Tijuca, estudou engenharia na UFRJ e seguiu para a Universidade Técnica de Munique, na Alemanha. Saiu dali com pós-doutorado e reconhecimento por contribuir para a revisão da norma técnica germânica sobre cálculo de compressão (flambagem).
Sua carreira floresceu em empreendimentos como o emissário submarino de Ipanema e ganhou impulso nos anos 90 com a investida da Petrobras na Bacia de Campos. Em 1994 associou sua empresa, a Suporte Consultoria e Projetos, à Engineering Dynamics, criada por James Angehr e John Fowler na cidade de Kenner, região metropolitana de Nova Orleans.
Aos 44 anos estreou no circuito comercial de Teerã. Levou na bagagem um software com capacidade para resolver múltiplas análises em estruturas de engenharia civil e, também, em projetos militares:
- Foi minha primeira venda: um software Ansys para projetos de plataformas marítimas. O governo americano diz que é tecnologia sofisticada. Bobagem é um programa comum.
Desde então, e por mais de uma década, foi o personagem improvável de cenas insólitas às margens da Avenida Enqelab, que divide Teerã: um descendente judeu, educado pelo pai na conservadora interpretação batista da Bíblia, conduzindo negócios proibidos na antiga Pérsia, onde se forjaram os elementos fundamentais da cultura e tradição muçulmana do Islã xiita.
- Fiz 50 viagens ao Irã. Foram 13 anos intensos (1994 a 2007). Treinei mesmo muita gente por lá.
Galgoul revisa a memória, depois do almoço, agora sentado em um dos sólidos e bem torneados bancos de madeira da Igreja Batista de Itacuruçá, na Tijuca, local de seus cursos bíblicos dominicais:
- O Irã é uma ditadura religiosa assentada em dinheiro do petróleo, que ainda vai cair ao custo de muitas vidas. Mas, é preciso dizer, os judeus vivem ali pacificamente. E odeiam o Estado de Israel.
Quando fechou seu primeiro contrato em Teerã, o país dos aiatolás ainda não estava sob embargo econômico internacional - decretado no ano seguinte-, mas já cultivava a reputação de centro operacional do terrorismo xiita. O governo do aiatolá Ali Khamenei já contava 114 mortes em atentados contra alvos judeus na América do Sul.
Os negócios prosperaram em segredo. Pela década e meia seguinte,apesar do embargo da ONU, Galgoul vendeu a joia tecnológica da Engineering Dynamics, um sistema integrado de análise estrutural (conhecido como SACS) para as maiores estatais iranianas. E, principalmente, para empresas sob controle acionário direto da Guarda Revolucionária Islâmica, a mais influente força política e econômica do país. Em março de 2007 saiu de Teerã às pressas, ao saber que uma briga de sócios da EDI resultara em denúncia das operações iranianas ao FBI. Galgoul voltou ao Brasil e, depois, viajou aos EUA. A realidade superou a imaginação do analista de cálculo.
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