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João Barone: O despreparo dos pracinhas e do Brasil
Ao desprezar a história da FEB na Segunda Guerra, o Brasil seguirá despreparado para assumir seu lugar, seja lá qual for, onde quer que seja
Entre os conhecedores da incrível saga que foi a participação do Brasil na Segunda Guerra, existe uma história que é exemplo dos muitos paradoxos que envolvem o tema. Quando os ex-combatentes eram abordados por jornalistas ou documentaristas buscando algum fato sobre a participação do Brasil na guerra, começavam a entrevista com uma pergunta ao entrevistador: "Mas o senhor vai falar bem ou vai falar mal da FEB?".
Acredito que a maioria dos ex-combatentes que leram a matéria da Folha sobre o despreparo dos pracinhas ("Pracinhas foram à 2ª Guerra sem preparo", Poder, 3/4) deve ter achado que ela era "uma matéria contra a FEB".
Para o público em geral, o mesmo artigo deixou dúvidas se o esforço empreendido para essa façanha valeu ou não. Por outro lado, serviu para tirar da toca aqueles que, como eu, acreditam que esse esforço não foi em vão.
Depois de sofrer com a guerra e de provar que o brasileiro tem fibra e coragem no campo de batalha, os ex-combatentes brasileiros, ao contrário dos ex-combatentes de outras nações, foram esquecidos e -pior- depreciados em seu próprio país. As desculpas para tal gafe são sempre as mesmas: fomos joguete nas mãos dos Estados Unidos e o brasileiro não tem memória.
Longe de qualquer tentativa ufanista de enaltecer a participação do Brasil na Segunda Guerra, é preciso entender aquela época, avaliar o que aconteceu, como a parceria Vargas-Roosevelt, os torpedeamentos dos navios brasileiros pelos nazistas e a tentativa de incluir o Brasil no bonde da modernidade, no momento em que se desenhava a ONU e uma nova ordem mundial.
Pano rápido. Durante seus oito anos de mandato, o ex-presidente Lula esteve por diversas vezes na Itália e não se preocupou em visitar uma única vez o solene Monumento Votivo na cidade de Pistoia, que foi erigido em honra aos 470 brasileiros que morreram em combate na guerra. Isso retrata bem o desconhecimento que o brasileiro comum tem dessa passagem importante da nossa história.
Meu pai, que foi um dos 25 mil pracinhas, pouco falava sobre seus dias no front. Os que lutaram preferiram esquecer. Nós é que não podemos nos esquecer, pois seria invalidar esse esforço. Se foram vítimas da política, dos interesses econômicos, se estavam despreparados, pouco importa. O Brasil lutou. Se foi preciso ou não, podemos discutir isso até hoje, à luz da democracia, que inclusive voltou ao Brasil depois da guerra.
O fato é que lutamos. Muitos países que lutaram contra a tirania nazista estavam despreparados. Mas o Brasil foi lá, cruzou o Atlântico, numa verdadeira epopeia, tentando entrar a fórceps na modernidade. Só isso já seria motivo para entender o que aconteceu e validar o sacrifício de quem esteve sob fogo de metralhas e canhões nazistas.
Voltando um pouco no tempo, o presidente americano Roosevelt prometeu à Vargas um lugar de destaque para o Brasil na ONU, o que não aconteceu. Até hoje estamos esperando uma cadeira no Conselho de Segurança, depois de mandar tropas ao Suez, ao Timor Leste e ao Haiti. Ao desprezar a história da FEB na Segunda Guerra, o Brasil vai continuar despreparado para assumir seu lugar, seja lá qual for, onde quer que seja. Viva a FEB!
JOÃO BARONE baterista da banda "Os Paralamas do Sucesso", produziu o documentário "Um Brasileiro no Dia D" e prepara um documentário e um livro sobre a participação do Brasil na Segunda Guerra.
ARTIGOS
Brasília - Eliane Cantanhêde
A Grande Muralha
BRASÍLIA - A viagem à China é a grande estreia internacional de Dilma. A China é a segunda economia mundial, continua crescendo desabaladamente e é forte compradora de commodities brasileiras -mas também uma concorrente.
Aliada e adversária, é a grande incógnita do século, com um regime econômico agressivo e um regime político esdrúxulo, ao redor de um caixão de cristal: o de Mao.
A frente mais importante da viagem é o comércio bilateral, que se multiplica tanto quanto a China cresce e é superavitário para o Brasil. Mas os chineses barram a inserção real de empresas como Embraer e Marcopolo no país e geram concorrência desigual nos grandes mercados e até nos vizinhos.
Se Dilma disse o que disse para Obama, cobrando coerência e abertura comercial, deverá ir na mesma linha com Hu Jintao, lembrando que "reciprocidade" é palavra-chave nas relações internacionais.
O segundo item da agenda é a Cúpula dos Bric (Brasil, Rússia, Índia e China) na cidade de Sanya. E, neste caso, o Brasil só tem elogios à posição chinesa, que recusou uma nova dualidade mundial num G2 (EUA-China) e investiu no bloco.
Se Dilma tem cobranças na área de comércio e indústria, deverá elogiar a coesão do grupo, que se absteve na votação da invasão da Líbia sob pretextos humanitários no Conselho de Segurança da ONU e trata de discutir saídas comuns para a crise financeira internacional, que não acabou. A inflação ronda o mundo -e o Brasil.
O terceiro item é como Dilma, que sofreu na pele e impôs nesses cem dias uma inflexão na área de direitos humanos, vai tratar a prisão do Nobel da Paz Liu Xiaobo e o estranho sumiço do artista Weiwei.
Se ela botou o dedo na ferida no caso do Irã e reviu a mania do Brasil de ficar em cima do muro, sabe-se lá o que vai fazer. A depender do Itamaraty, nada. Mas pode dar um toque para Jintao ou uma indireta num discurso. A ver.
PODER
Janio de Freitas
Uma outra providência
Não foi o revólver que atirou em Realengo, foi a cabeça do atirador. Para casos de transtorno mental, falta o conhecimento de serviços capazes do auxílio
A MISTURA DE emoções penosas e cobranças e promessas de pretensas medidas preventivas é um hábito brasileiro, ainda que não só nosso. A combinação é péssima, com a pressa ocupando o lugar da calma indispensável para a ponderação dos problemas e das sempre variadas propostas para prevenir repetições do fato perverso.
Ainda nos desdobramentos imediatos da tragédia de Realengo estavam já propostas e promessas de ações entre pessoas emocionadas e representantes governamentais. Polícia na porta das escolas; fortalecimento e sistemas escolares de vigilância contra violência, ampliação prática das restrições à posse de armas são as majoritárias, muitas vezes igualado seu teor simplório ao pedantismo do "especialista" que também as propunha.
Um policial na porta da escola seria, como disse o secretário José Mariano Beltrame, o primeiro a morrer em Realengo. Esse gênero de proteção tem sido inócuo onde quer que adotado.
Que o digam os bancos, os restaurantes paulistas com vigilante e os shoppings em todas as cidades. Fazer das escolas fortalezas seria absurdo em muitos sentidos, além da evidência de que mesmo quartéis são assaltados, inclusive em seus bancos internos como o da Vila militar no Rio. E por aí vai.
Os projetos na Câmara e no Senado para ampliação do porte de armas, citados pela aritmética jornalística desde 11 até 300 e tantos na fila, não têm cabimento algum. Muito ao contrário, os portes admitidos por lei devem ser mais reduzidos. O que justifica, entre outros, o porte de arma por bombeiros? Mesmo o porte de armas livre para militares deveria ser objeto de exame (se isso fosse possível no Brasil), com os exemplos do seu mau uso, até a pretexto do trânsito, e a carência de exemplos positivos.
Mas, quanto a episódios de monstruosidade e seus revólveres: se um homicida como o de Realengo, em vez do revólver, matar com faca, alcançará igualmente o seu objetivo.
Não foi o revólver que atirou em Realengo. Não foram os dedos que o acionaram. Foi a cabeça do atirador. Nessas violências, antes de tudo está a cabeça. E por que ela agiu, no caso e nos demais de desatino semelhante? Por desconhecimento e inércia -o que não quer dizer culpa- de segundos e terceiros mais próximos, ou menos distantes, do rapaz arredio.
As poucas e breves narrativas que o retratam, na visão de parentes, expõem com toda a clareza um longo caso de transtorno mental necessitado de tratamento. As narrativas demonstram, na mesma medida, que não faltou a percepção desse estado por quem ouvia ou observava o rapaz: o fascínio pelo ataque às torres em Nova York, o desejo de destruir o Cristo Redentor, a reclusão voluntária, a alteração da própria figura -tudo muito indicativo e bem percebido.
Apesar disso, não houve iniciativa alguma. Apenas estranheza. Não há por que imaginar descaso, muito menos de todos. A falta, tudo indica, foi de conhecimento do que fazer. De conhecimento da existência de serviços capazes do auxílio, até em um simples posto de saúde apto a dar orientação sobre o serviço a procurar. Sim, tais serviços são pouco numerosos; faltam-lhes mais verbas, mais pessoal, mais instalações. Existem, no entanto. E devem ser procurados para casos como o do rapaz de Realengo. Tão numerosos.
A providência que falta é a informação ao grande público sobre o que está ao seu alcance, quando estranhezas excessivas e injustificáveis impressionem. Não porque a persistência das condutas leve a desfechos horríveis. Mas o sofrimento do próprio transtornado já é bastante para uma iniciativa solidária.
Providência governamental já atrasada é uma campanha insistente de esclarecimento do grande público, sobre o que deve fazer diante de casos como o do rapaz de Realengo antes da explosão de seu distúrbio. Isso, sim, é uma das prevenções necessárias -para pacientes e para a sociedade.
Do contrário, nos casos que vão aos extremos, quando não forem revólveres, serão facas, serão barras de ferro, serão as mãos. E, nos outros casos, será o sofrimento reparável de tanta gente, dos pacientes às famílias e aos próximos.
COTIDIANO
Danuza Leão
Quanta irritação
Dilma e Lula têm um traço parecido: não se esquecem dos que discordaram de seus pensamentos
AOS CEM DIAS do governo Dilma é impressionante o número de vezes em que saiu na imprensa "Dilma se irritou", "Dilma ficou irritada".
A presidente sempre teve fama de geniosa, mas foram tantas as ocasiões em que seu temperamento virou notícia que não dá para acreditar. É bom que ela seja sóbria e fale pouco, o que está sendo um alívio geral. Mas só assim, de memória: Dilma se irritou quando houve o apagão; se irritou com uma tradutora em NY; se irritou com Henrique Meirelles porque ele teria divulgado que imporia condições para ficar no Banco Central; se irritou quando, durante a campanha, foi questionada sobre a volta da CPMF e sobre o aborto; se irritou com a assessoria quando trocou o nome de uma cidade do Nordeste. Essas são apenas algumas das irritações públicas, imagine as privadas.
Lula falava muito, mas só sobre o que queria; não disse nem vai dizer uma só palavra sobre os passaportes especiais concedidos à sua família ítalo-brasileira. Já o estilo de Dilma é confortável. Como fala pouco, não precisa explicar os gastos dos cartões corporativos da Presidência, que aumentaram 8,2% em apenas cem dias, nem as ações do Ministério da Pesca, minha grande curiosidade há anos. Quais estarão sendo os feitos de Ideli Salvatti?
Quem trabalha para o governo não pode piar, pois algumas das irritações presidenciais acabaram em demissão ou em não nomeação -de quem a irritou, é claro. Dilma e Lula não são iguais, mas um traço de seus perfis é parecido: eles não se esquecem dos que, em algum momento, discordaram de seus pensamentos, e esperam a hora para dar o troco. Quando ela chega, é quase como dizia Maquiavel: a bondade deve ser feita aos poucos, a maldade, de uma vez só. Quase: a diferença é que para os amigos, aliados e correligionários, a bondade é tão grande, que basta uma (para cada).
Será que existe no fundo, lá no fundo, um espírito de vingança? Seria um absurdo achar que Dilma tem, em seu caráter, traços ditatoriais -logo ela, que tanto sofreu com a ditadura militar. Mas dentro de um contexto humano, é compreensível que ela se comporte, agora, um pouco como os militares se comportaram. Eles achavam que podiam tudo, agora é ela quem (acha que) pode tudo; faz sentido. Às vezes sua vontade -ou a do seu partido, não sei- extrapola o aceitável quando se fala de uma democracia plena. Brizola -lembra dele, presidente - disse, na primeira posse de Lula: "isso vai ser uma ditadura stalinista".
Presidente, pegue mais leve. Mesmo tendo recebido uma enorme aprovação, lembre-se que muita gente não votou na senhora. Obrigar o Bradesco a votar pela troca do presidente da Vale -que teve uma atuação brilhante- sob a ameaça de não haver renovação de um contrato que vencerá no fim do ano é inaceitável. E pior: o banco aceitou. Dilma deve estar irritada com as opiniões do ministro Mantega e do presidente da Petrobras, que diferem: um diz que a gasolina vai aumentar, o outro que não vai, e ela não gosta disso.
Não é razoável que um/uma presidente fique irritado/irritada com pessoas que não rezam pela sua cartilha e acham que o Brasil não é um feudo. É um país, e tem dono: pertence aos quase 200 milhões de brasileiros.
ACIDENTE AÉREO
Queda de helicóptero mata empresário e piloto em São Paulo
DE SÃO PAULO - O empresário Adriano Rodrigues e o piloto Marcelo Reboredo morreram anteontem num acidente de helicóptero em Santo André (Grande SP).
A aeronave em que eles estavam partiu às 17h do Guarujá e pousaria no aeroporto de Campo de Marte, na capital paulista. A última comunicação foi feita pelo piloto por volta das 17h40 de sexta-feira.
As vítimas foram encontradas em uma área de Mata Atlântica próxima a Rio Grande da Serra. A Aeronáutica investigará o acidente.
Rodrigues atuava na área de turismo em Porto Seguro (BA) e Reboredo era seu funcionário. Seus corpos serão sepultados hoje no cemitério Primaveras, em Guarulhos.
ILUSTRADA
Brasil, 2050
DIPLOMACIA
Um horizonte geopolítico
RESUMO
O perfil do Brasil em torno de 2050 deve se delinear a partir de sua tradição diplomática de crescente autonomia em relação às potências hegemônicas, ora deslocadas para o Oriente, projetando-se num cenário geopolítico de consumo exacerbado, alta tecnologia e explosão demográfica que atualiza as teorias de Thomas Malthus.
OTAVIO FRIAS FILHO
A POLÍTICA EXTERNA brasileira sempre esteve voltada para dois objetivos básicos. Preservar a integridade de um território imenso e mal ocupado. E alcançar algum grau de autonomia perante as potências dominantes em cada época, sucessivamente Grã-Bretanha e Estados Unidos.
Esses objetivos foram decorrência inescapável da condição de país continental e periférico. Sem prejuízo de oscilações ocasionais, eles formam um eixo contínuo na tradição diplomática brasileira ao longo do Império e da República.
Nas três vezes em que o Império do Brasil se afastou dessa orientação essencialmente defensiva e foi à guerra, o motivo foi o Uruguai. Esse brioso país sempre padeceu das ambivalências de território-tampão entre os domínios de Espanha e Portugal, tendo trocado de mãos mais de uma vez. Em 1825-28 e em 1852, o Brasil moveu guerra contra a Confederação que viria a ser a Argentina para impedir que ela se reapoderasse do Uruguai. No episódio que deu início à Guerra do Paraguai (1865-70), o Brasil invadiu o Uruguai para evitar que o beligerante ditador do Paraguai, Solano López, tutelasse aquele país.
As intervenções ocorreram a pretexto de proteger interesses brasileiros nas guerras civis uruguaias (acredita-se que, em meados do século 19, um quinto da população do país vizinho fosse composto de brasileiros). Mas seu motivo de fundo era prevenir a reconstituição do antigo Vice-Reinado da Prata (Argentina, Uruguai, Paraguai, Bolívia e norte do Chile) sob as rédeas de algum autocrata, em Buenos Aires ou Assunção, animado por inclinações expansionistas.
LUTA DOMÉSTICA A prioridade na política externa refletia o principal problema da política interna, ou seja, a ênfase na salvaguarda territorial decorria da luta doméstica, que marcou as primeiras décadas do Império, contra as forças centrífugas regionais que ameaçavam despedaçá-lo.
Tal prioridade, que moldou as relações externas do país, explica em parte a proeminência no cânone diplomático de José Maria da Silva Paranhos Jr., o barão do Rio Branco, responsável pela vantajosa delimitação de diversas pendências fronteiriças no longo período em que foi chanceler da República (1903-12). Mas Rio Branco foi também quem fixou a estratégia brasileira perante os Estados Unidos.
Com as devidas adaptações, não era uma política diversa daquela que, na maior parte do tempo, a elite dirigente do Império pusera em prática em relação aos britânicos. Tratava-se de estabelecer um relacionamento estreito e concessivo com a potência dominante, determinado desde logo por sua relevância, seja como fonte de investimentos, importações e empréstimos, seja como escoadouro das exportações agrícolas brasileiras.
Ao mesmo tempo, resguardava-se certa margem de manobra para contenciosos pontuais e ficava implícito que o Brasil adotaria a política que melhor lhe conviesse em face de seus vizinhos sul-americanos. Com a emergência dos Estados Unidos ao primeiro plano do poder mundial, nas últimas décadas do século 19, o eixo de gravidade da diplomacia brasileira se transferiu de Londres para Washington, na esteira da transferência do principal destino das exportações de café.
NACIONALISMO Na década de 1930, período de exacerbação nacionalista no mundo inteiro, o Brasil adotou uma política deliberadamente ambígua em suas relações com os Estados Unidos e a Alemanha, que rivalizavam pela supremacia econômica e militar. Getúlio Vargas tergiversou, procurando tirar proveito prático da conjuntura, indeciso diante dos pratos da balança, enquanto se precipitava o confronto que levaria à Segunda Guerra Mundial (1939-45). O interesse americano de utilizar bases aéreas no Nordeste selou os acordos (1942) pelos quais o Brasil se manteve na órbita dos Estados Unidos, em contrapartida a investimentos na siderurgia nacional.
Durante a Guerra Fria (1945-89), quando Estados Unidos e União Soviética, vivendo um estado de beligerância latente, dividiram o mundo em duas áreas de influência estanques, o Brasil continuou alinhado aos americanos. A configuração geopolítica apresentava, porém, duas novidades.
Em primeiro lugar, a União Soviética retomara a política de fomentar a revolução social em outros países, que passava a tutelar sempre que um grupo local vinculado a Moscou chegasse ao poder ou se convertesse ao bloco soviético, como aconteceu em Cuba no começo dos anos 1960.
Em segundo lugar, a paralisia determinada pela mútua capacidade de retaliação nuclear impelia as duas superpotências a "exportar" seu conflito para regiões distantes, em geral cenários de alguma guerra civil na qual cada uma das facções em confronto era atraída para um lado da polarização mais ampla. Assim, inúmeros Estados se tornaram, na prática, protetorados norte-americanos ou soviéticos.
ALINHAMENTO AUTOMÁTICO Devido a seu peso específico como país e por se encontrar numa área geográfica de baixa conflagração, não foi o caso do Brasil. Ao lado de governos, como os de Dutra (1946-51) e Castelo Branco (1964-67), que levaram o alinhamento com os Estados Unidos a um grau quase automático, houve outros, como os de Vargas (1951-54) e Goulart (1961-64), caracterizados por intensa confrontação. Nessas escaladas, um autêntico desejo de afirmação nacionalista mesclava-se à tática de apontar um bode expiatório externo como responsável pelos problemas do país.
Nas idas e vindas, o Brasil não deixou de cultivar o ideal de uma política externa mais autônoma. Os anos 1950-60 foram também uma época de descolonização na África e na Ásia, que gerou novo surto de excitação nacionalista em escala internacional.
Já esboçada de maneira quixotesca por Rui Barbosa na Conferência de Haia (1907), experimentada aos trancos e barrancos no canhestro episódio em que o Brasil abandonou a Liga das Nações (1926), a formulação de uma diplomacia dita afirmativa ou independente deu mais um passo rumo à maturidade no período Jânio Quadros (1961), no que terá sido a contribuição menos fugaz desse governante.
Mesmo na época da ditadura militar (1964-85), que, por sua natureza anticomunista, acentuava a posição brasileira de aliança subalterna em relação aos Estados Unidos, ocorreram desavenças, sobretudo no governo Geisel (1974-79), a propósito das pressões americanas contra o acordo nuclear Brasil-Alemanha, acompanhadas de interpelações quanto a violações de direitos humanos no Brasil.
AUTONOMIA A autonomia diplomática, que se buscava ampliar conforme a economia brasileira ganhava massa crítica, era cada vez mais expressa na multiplicação de relações externas, destinada a abrir novas frentes de comércio, e no apoio às reivindicações dos países em desenvolvimento perante os países desenvolvidos. Com a derrocada da União Soviética (1991) e a restauração do capitalismo na China, desapareceu o conflito ideológico Leste/Oeste, substituído por novas formas de antagonismo entre Sul (países em desenvolvimento) e Norte (países desenvolvidos).
No âmbito doméstico, uma autêntica democracia consolidou-se ao longo do decênio de 1980. Com a abertura comercial da primeira metade dos anos 1990 e a erradicação da inflação a partir de mea-dos daquela década, o Brasil completou a longa transição que o converteu em sociedade aberta e economia de mercado estável, semelhante, apesar da funda desigualdade social, às do mundo desenvolvido.
Se a questão ideológica se esvaziara, nem por isso desapareceram os contenciosos com os Estados Unidos, que cresceram conforme a posição econômica do Brasil se robustecia. A tônica da política externa tem sido desde então pressionar por relações internacionais mais equitativas e pela ampliação do centro decisório mundial, de maneira mais discreta no período Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e mais desenvolta, com resquícios de nostalgia ideológica, na gestão Luiz Inácio Lula da Silva (2003-10).
DEMOGRAFIA As transformações materiais que ocorreram em volume e rapidez vertiginosos no século 20 tendem a esmaecer as evidências de que o ritmo continua a acelerar e deve atingir o paroxismo nas próximas décadas. Trata-se de um fenômeno, antes de tudo, demográfico.
A humanidade chegou ao primeiro bilhão de habitantes por volta de 1800; ao segundo, em 1930; ao terceiro, em 1960. Hoje em 6,7 bilhões, estima-se que a população humana terá rompido a marca dos 9 bilhões por volta de 2050. (Apenas quatro países -Índia, Paquistão, Bangladesh e Nigéria- responderão por mais de 30% do incremento, sem que se perceba entre os ambientalistas a menor preocupação em deter esse "aquecimento" demográfico.) A partir da segunda metade do século, com a provável universalização de padrões de classe média, presume-se que o número global de habitantes se estabilize, até começar a decair lentamente no longínquo século 22.
Se ao menos as projeções para 2050 não estiverem muito erradas (e nada é menos confiável do que uma estimativa de longo prazo), isso implicaria um aumento de um terço na população mundial nos próximos 40 anos. Para ter noção do impacto na demanda por recursos naturais e aquilatar a elevação esperada nos níveis de consumo humano, basta ressaltar que, pela média das estimativas, no mesmo período, a riqueza mundial deverá crescer entre cinco e seis vezes, e que o gasto de energia poderá dobrar.
MALTHUS Num ensaio publicado em 1798, o economista britânico Thomas Malthus postulou que toda população se expande em escala geométrica até seu crescimento deparar com freios naturais (impostos pelo esgotamento de recursos e pela competição com outros seres vivos) e, no caso da espécie humana, artificiais: a guerra e o "vício", a saber, sexo não reprodutivo. Por dois séculos, Malthus vem sendo tratado com sarcasmo por humanistas que resistem à dureza de seu vaticínio e o acusam de não ter reconhecido o alcance da revolução de produtividade que já se anunciava em sua própria era.
É impraticável vislumbrar que novos saltos de eficiência e novas formas de obtenção de energia serão viáveis até o panorama imaginário de 2050. Muito do atual catastrofismo ambientalista poderá se revelar precipitado conforme a tecnologia se desenvolva em aceleração crescente. Ao mesmo tempo, não faltam indícios de que a utilização de recursos, ao menos nos moldes atuais, se aproxima de um limite temerário. Os modernos anticoncepcionais acrescentaram um poderoso freio artificial à expansão humana, mas a polêmica com o fantasma de Malthus não foi encerrada.
GEOPOLÍTICA Em termos de evolução geopolítica, o processo decisivo será a transferência, que já teve início, do centro de gravidade mundial do Ocidente para o Oriente. Em meados do século, as duas maiores economias do mundo deverão ser China e Índia (cada uma delas detendo, então, segundo as projeções disponíveis, pelo menos o equivalente a todo o produto mundial de hoje, cerca de US$ 60 trilhões). Terão suplantado por larga margem os Estados Unidos e a União Europeia, cujas economias somadas atingiriam quando muito, por volta de 2050, a mesma cifra. Dada a forte integração econômica e cultural entre esses dois últimos blocos e tendo em vista a tendência histórica à formação de aglomerados cada vez mais vastos, é plausível conceber que se tornem uma espécie de federação do Atlântico Norte.
Em redor dessas três ou quatro grandes massas na geopolítica econômica, gravitará uma constelação de países de porte considerável: Austrália, Indonésia, Paquistão, Irã, Turquia, África do Sul, talvez Angola e Nigéria, provavelmente Argentina, Colômbia, México e Canadá. (Além de Japão e Rússia, que devem perder parte do peso específico que detêm hoje.) É verossímil que venham a se aglutinar em volta de um dos três ou quatro grandes blocos, arrastados pelas respectivas imantações geográficas e comerciais. Mas, em vez de um mundo dividido em belicosos impérios globais à maneira da Guerra Fria, como no romance "1984", que George Orwell publicou em 1949, parece mais realista pensar numa complexa rede de ligações entrecruzadas.
Apesar do pesadelo malthusiano, que incitaria à luta em torno da exaustão de recursos naturais, é duvidoso que a hostilidade venha a ser o traço predominante nas relações entre as hiperpotências desse mundo multipolarizado. Suas economias estarão associadas de modo inextricável sobre uma mesma base capitalista e tecnológica. Seu poder estará contido pela emergência de toda uma camada de novos parceiros, também na posse de armas nucleares. A soberania do Estado decerto será mais limitada que hoje em relação a acordos e sanções internacionais. A opinião pública internacional será mais influente.
E já se disse que a guerra é uma atividade em que os jovens morrem enquanto os velhos negociam -mas a juventude vem se tornando avessa ao jogo. O mesmo hedonismo calculista que universaliza os padrões de classe média, favorecido pela melhoria na qualidade de vida e seu prolongamento propiciados pela ciência tecnológica, também enfraquece aos poucos os fundamentos emocionais da guerra -religião, pátria, etnia-, substituídos pela busca da felicidade individual. Até as regiões menos receptivas a essa mentalidade, como o mundo árabe, já estão impregnadas dela. É possível que as guerras que houver no futuro envolvam essencialmente máquinas.
POTÊNCIA TROPICAL A posição do Brasil nesse cenário, com todas as correções que o curso do tempo impuser, será singular. Quarta ou quinta economia do mundo, com um PIB estimado para 2050 em US$ 12 trilhões (seis vezes o atual) e uma população estabilizada em redor de 215 milhões, estará talvez isolado num patamar intermediário entre os gigantes e seus satélites. Será a única potência tropical, a única situada no hemisfério Sul, a única composta por população de maioria miscigenada - e a única, tudo indica, a ter renunciado a armamento nuclear.
Essa é uma perspectiva que coloca tremendos desafios à política externa, diferentes daqueles enfrentados no século 20 e com os quais estamos acostumados a pensar, ainda que seja útil buscar tanto inspiração nos melhores momentos como um lastro de coerência em nossa história diplomática. É como se o futuro tão postergado agora estivesse ao alcance das mãos. Por mais que possa afagar a autoestima nacional, é certo que essa perspectiva acarreta responsabilidades e problemas imensos.
De um ponto de vista menos remoto, voltado aos próximos dez ou quinze anos, o mais provável é que convenha ao Brasil perseguir uma política de ativa equidistância diante da polarização entre China e Estados Unidos, a exemplo do que procurou fazer em situações análogas no passado, e, ao mesmo tempo, persistir nos esforços em prol de alguma democratização negociada do poder mundial.
PROBLEMAS Mas outros problemas começarão a surgir. A força gravitacional da economia brasileira deverá atrair, por exemplo, ondas maciças de imigrantes, agora originários de países africanos e latino-americanos. O Brasil terá de desenvolver uma política em relação a esse tema delicado, sempre sujeito a impulsos contraditórios de assimilação e xenofobia.
Poderá o Brasil manter a singularidade de sua abstenção nuclear? Como poder regional inconteste, isso é o que mais lhe interessa; como nação que cultiva um ideal pacifista, também. Se o governo brasileiro detivesse armamento nuclear, cedo ou tarde algum dos paí-ses em sua órbita tenderia a imitá-lo, com o efeito mais provável de restringir, em vez de aumentar, o predomínio brasileiro. Além disso, a um país sem enfrentamentos graves à vista basta manter-se em condições tecnológicas de vir a desenvolver armas nucleares num lapso de poucos anos, caso isso se mostre inevitável.
Ao irradiar sua presença econômica e influência política pelo mundo, porém, uma potência emergente amplia seus contenciosos e fica mais exposta ao risco de conflitos. Até por isso, deverão ser duas as decorrências prováveis da abstenção nuclear. O Brasil terá de desenvolver recursos militares convencionais a fim de compensar a renúncia e garantir uma capacidade mínima de intimidação.
E sua política externa fará bem em evitar toda confrontação desnecessária (haverá uma crescente tendência de opinião isolacionista dentro do país), pautando-se mais do que nunca pela negociação pacífica dos antagonismos próprios e alheios. Será necessário estabelecer uma linha de coerência nítida e cuidadosa entre promoção dos direitos humanos e respeito à autodeterminação dos povos.
CULTURA E TECNOLOGIA Neste sumário de panoramas prováveis, em que é dado ao jornalista especular com uma liberdade vedada ao especialista, falta mencionar o que vem sendo chamado de "soft power", o peso da influência cultural e tecnológica nas relações entre países. Uma opinião pública internacional, que se esboçou nas campanhas abolicionistas do século 19 e continuou a se desenvolver na esteira dos meios de comunicação de massa, será fator decisivo, talvez preponderante, na era digital. Qualquer poder nacional será expresso, cada vez mais, na valorização de sua cultura e no respeito que seu exemplo conquistar junto à opinião pública interligada em escala mundial.
Toda política externa aspira a conciliar a projeção dos interesses do país com a adoção de princípios e normas universais, válidos para todos. Poderia o Brasil dar uma contribuição inédita no rumo da consecução desse ideal, com base em seu histórico de resolução pacífica de conflitos, na plasticidade de sua confluência étnica e cultural, no caráter singular de sua condição geopolítica?
Reunião de contrários num amálgama original, essa utopia brasílica -recorrente desde as premonições de Caminha e Vieira até os sistemas explicativos de Gilberto Freyre e Oswald de Andrade, chamada de "Roma tropical" nas miragens ainda recentes de Darcy Ribeiro- está de novo no horizonte. Muitas décadas e o peso acachapante da "Realpolitik" nos separam dela.
"A preservação da integridade de um território imenso e mal ocupado e a busca de algum grau de autonomia perante as potências formam um eixo contínuo da tradição diplomática brasileira"
"Nas idas e vindas, o Brasil não deixou de cultivar o ideal de uma política externa mais autônoma, que se buscava ampliar conforme a economia ganhava massa crítica"
"Por dois séculos, Malthus vem sendo tratado com sarcasmo por humanistas que resistem à dureza de seu vaticínio; não faltam indícios de que a utilização de recursos se aproxima de um limite temerário"
"O hedonismo calculista que universaliza padrões de classe média enfraquece os fundamentos emocionais da guerra - religião, pátria, etnia; é possível que as guerras que houver envolvam essencialmente máquinas"
"A política externa fará bem em evitar toda confrontação desnecessária; será preciso estabelecer uma linha de coerência entre promoção dos direitos humanos e respeito à autodeterminação dos povos"
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