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segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

28 de fevereiro de 2011 - FOLHA DE SP


DESTAQUE DE CAPA
Oposição na Líbia decide criar conselho de transição

Rebeldes em Benghazi, leste da Líbia, criaram um conselho de transição que pretende ser o embrião de um governo pós-Gaddafi. O ditador voltou a afirmar que não vai abandonar o poder. Depois de 13 dias de revolta, cresce o número de cidades em poder da oposição. Ontem foi a vez de Zawiya, 50 km a oeste da capital, Trípoli. Há relatos de mais cidades próximas tomadas pelas forças oposicionistas.


Enquanto região ferve, feira de armas bate recorde de público

RICARDO BONALUME NETO
DE SÃO PAULO

A passagem de uma fragata iraniana pelo canal de Suez, o primeiro navio de guerra do país a fazer esse trajeto desde a tomada do poder no Irã em 1979 por teocratas islâmicos, foi bem mais simbólica que intimidante. Mais significativo das tendências regionais foi o saldo de uma feira de armamentos na semana passada: a décima edição da Idex (International Defence Exhibition and Conference, exibição e conferência internacional de defesa), em Abu Dhabi.
Maior feira bienal de material bélico do Oriente Médio e Norte da África, a Idex 2011 contou com a presença de 1.060 empresas exibidoras de 53 países -18% mais do que na mostra de 2009.
Como comparação, a maior feira bienal de defesa da América Latina, a ser realizada em abril no Rio, deverá ter 350 expositores. O espectro militar do Irã, simbolizado pela viagem da fragata para visita à Síria, também serviu de estímulo à Idex. A paranoia em relação ao Irã serve de pano de fundo para países como Arábia Saudita e Emirados Árabes irem às compras. Um terço das armas que os EUA exportam vai para o Oriente Médio.
O aumento do preço do petróleo tende a permitir aos países da região tanto investir em programas sociais -uma maneira de reduzir o descontentamento por trás das atuais revoltas- como continuar comprando armas. Algumas para defesa externa, algumas para uso em contenção de distúrbios. O "timing" da feira fez alguns países deixarem de enviar representantes ou enviá-los em quantidade bem menor -caso de Egito, Tunísia, Bahrein e Líbia.
A fragata iraniana Alvand é um navio obsoleto, projetado no Reino Unido na década de 1960. Ela foi, no entanto, reequipada com mísseis antinavio chineses C-802, que são mais modernos e letais que os originais. O negócio mostra como é difícil consenso em bloqueios de vendas de armas. Sempre haverá um país disposto a vendê-las -China e Rússia são dois exemplos.
Justamente por não terem acesso à importação de armas durante o longo conflito com o Iraque (1980-1988), os iranianos desenvolveram uma sofisticada indústria de defesa, com destaque para mísseis, mas incluindo cerca de 2.000 diferentes itens, exportados nos últimos anos para cerca de 30 países. De 1988 a 2007, África e Oriente Médio gastaram 79,1% mais com armas. No mesmo período, todo o planeta gastou só 1,6% mais.


ANÁLISE
Intervenção militar ocidental é alternativa controversa

CLAUDIA ANTUNES
DO RIO

Pressões por uma intervenção militar ocidental destinada a parar a repressão na Líbia e apressar a queda de Muammar Gaddafi vêm causando disputa entre analistas, parte deles influente na política externa dos EUA. O debate cresceu diante da perspectiva de guerra civil prolongada ou de uma partição do país em linhas tribais, com repercussão no mercado do petróleo e no fluxo de imigrantes para a Europa.
Outro fator em jogo é a possibilidade de a revolta árabe chegar à Arábia Saudita, maior produtor petrolífero e linha de frente da política de contenção do Irã. As pressões levaram o secretário da Defesa americano, Robert Gates, a afirmar na sexta que os que sugerem uma nova invasão para mudança de regime, nos moldes das lançadas no Iraque e no Afeganistão, "deveriam ter sua sanidade examinada".
A ação armada foi apoiada, entre outros, por editorial do "New York Times", por Nicolas D. Kristof, colunista do jornal, por Marc Lynch, da revista "Foreign Policy", e por Marco Vicenzino, analista de "risco geopolítico". A ideia foi refutada pelos acadêmicos Asli Bali e Ziad Abu-Rish e por Justin Raimondo, do site conservador-libertário antiwar.com.
Lynch e Kristof não defendem ainda uma invasão por terra, mas impor uma "zona de exclusão aérea", também sugerida pelo embaixador líbio na ONU, que rompeu com Gaddafi. O objetivo seria evitar o uso da aviação militar contra civis rebelados. O argumento é o da "intervenção humanitária". Para eles, é preciso evitar a repetição do genocídio em Ruanda, nos anos 90, quando 800 mil foram mortos no conflito entre hutus e tutsis.
Vicenzino parte do mesmo ponto, mas avança ao defender uma ação da Otan mesmo sem aprovação do Conselho de Segurança da ONU. Diz que é preciso evitar um vazio de poder na Líbia. Em artigo no site da Revista de Estudos Árabes, Bali e Abu-Rish, da Universidade da Califórnia, lembram que o primeiro teste de uma intervenção humanitária é causar menos danos do que pretende evitar, cálculo difícil quando se inicia uma guerra. Eles apontam riscos para civis decorrentes de operação aérea e dizem que, mesmo que houvesse disposição para invasão terrestre, seus efeitos seriam perniciosos.
Para Raimondo, a ameaça de ação armada pode jogar a favor de Gaddafi, que aposta na divisão popular.



Atirar ou desertar - o Exército decide
O que faz os militares mudarem de lado quando um ditador balança
Oficiais americanos deram conselhos a colegas egípcios

DAVID E. SANGER
ANÁLISE DO NOTICIÁRIO

Chega um momento em quase todos os regimes repressivos em que os líderes -e as forças militares que por tanto tempo os mantiveram no poder- precisam fazer uma escolha geralmente sem volta: mudar de lado ou começar a atirar. Na Líbia, os militares parecem divididos na sua lealdade ao coronel Muammar Gaddafi, e parte das forças de segurança teria aderido à oposição, enquanto outro grupo abriu fogo contra manifestantes.
Os militares egípcios, calculando que não valia mais a pena defender um faraó alienado de 82 anos, sem sucessor palatável e sem plano convincente para o futuro, acabaram se aliando aos manifestantes nas ruas. Ignoraram o conselho saudita, que, em telefonemas a Washington, disseram que o ditador Hosni Mubarak deveria abrir fogo se fosse necessário, e que os americanos deveriam parar de falar em "direitos universais" e apoiá-lo.
Já as forças do Bahrein, bem menos disciplinadas, decidiram afinal que a vizinha Arábia Saudita tinha razão. Do Egito, tiraram duas lições: se Obama ligar, bata o telefone. E atire logo. Em ambos os países, como em quase todos os Estados policiais, a chave da mudança está com os militares. E, como em qualquer instituição com interesses próprios, cabe aos líderes militares se perguntarem: o que a gente ganha?
Os militares egípcios, com seus interesses empresariais, para não falar da ajuda dos EUA, exigiram uma transição que preservasse seu poder, mas permitisse a Washington proclamar uma reforma gradual e substancial. No Bahrein, por outro lado, os militares decidiram ignorar o conselho do presidente Obama, que encararam como suicídio assistido.
Nada disso surpreendeu muito a Casa Branca que, há poucos meses, a pedido de Obama, começou a examinar a vulnerabilidade desses regimes e, mais recentemente, passou a examinar o que torna bem sucedida uma transição para a democracia. Michael McFaul, importante assessor de segurança nacional do governo americano, comanda o que chama, brincando, de "Diretório Nerd" da Casa Branca, onde passa semanas produzindo estudos de caso para o presidente e o Conselho de Segurança Nacional. "Não há um só enredo nem um só modelo", afirmou McFaul. "Há muitos para uma transição democrática, a maioria deles confusos."
O Egito certamente começou assim, com batalhas entre manifestantes e policiais nas ruas, e uma invasão de capangas para dispersar a oposição na praça Tahrir. Mas as autoridades americanas, lembrando-se de conversas com colegas egípcios, souberam, aos oito dias de crise, que os dias de Mubarak estavam contados, quando os militares deixaram claro que simplesmente não disparariam contra o seu próprio povo. "Ficamos repetindo o mantra: 'Não rompam o vínculo que vocês têm com o seu próprio povo'", disse um alto funcionário americano envolvido nas negociações.
As autoridades americanas acham que suas palavras foram persuasivas em grande medida por causa das profundas relações entre os militares dos dois países. Os 30 anos de investimentos valeram a pena na hora em que generais, cabos e oficiais de inteligência discretamente ligaram ou mandaram e-mails para amigos com os quais haviam treinado. Mas agora vem a parte mais complicada: fazer os militares cumprirem suas promessas de permitir que um governo civil floresça.
Isso vai significar que os militares abram mão do seu monopólio do poder, o que não é fácil para uma instituição profundamente presente na economia nacional -característica que tem em comum com o Exército de Libertação Popular da China. A questão é se os militares podem gerir uma transição do Egito para a democracia, assim como fizeram os militares da Coreia do Sul, Indonésia, Filipinas e Chile.
A Coreia do Sul é o melhor exemplo de um bom resultado. O país está hoje entre os mais prósperos do mundo. Diante das enormes manifestações nas ruas em meados da década de 1980, os generais, gradualmente, permitiram eleições livres.
E há a Indonésia. O general Suharto governou por 31 anos, mas perdeu força e caiu após duas semanas e meia de distúrbios em 1998. Os militares indonésios levaram pouco mais de um ano para realizar eleições. Karen Brooks, ex-especialista da Casa Branca para assuntos da Indonésia, disse que foi importante ter um prazo claro, bem como permitir a participação islâmica na política.
Mesmo na mais populosa nação muçulmana do mundo, observa ela, os partidos islâmicos continuam sendo uma ínfima minoria. No Bahrein, os militares disseram ao Pentágono que jamais permitiriam que os xiitas assumissem posições importantes.
"Disseram-nos que os xiitas seriam todos espiões do Irã", disse um ex-alto funcionário do Departamento de Defesa. Então, quando os protestos começaram, os militares decidiram que, se não atirassem, não teriam futuro: a maioria xiita assumiria. Os líderes militares apostaram no rei Hamad bin Isa Al Khalifa. No dia em que seu filho, o príncipe regente Salman, foi colocado à frente de um "diálogo nacional", as tropas abriram fogo outra vez. Abderrahim Foukara, diretor da sucursal do serviço árabe da Al Jazeera em Washington, disse que as consequências da repressão são previsíveis.
"Quando você atira em mulheres e crianças às 3h da manhã, pode conseguir se aferrar ao poder por um tempo, mas qualquer senso de legitimidade vai embora", disse ele. Mas outros diziam a mesma coisa quando o Exército Popular de Libertação da China abriu fogo na praça Tiananmen, em 1989.
Hoje, o Exército tem interesses disseminados e está tão rico e poderoso que a maioria dos líderes chineses não se dispõem a desafiá-lo.


AVIAÇÃO
LAN vai aumentar passagens devido à alta do petróleo

DAS AGÊNCIAS DE NOTÍCIAS - A companhia aérea chilena anunciou aumento de entre 8% e 12% no preço das passagens internacionais, por causa das revoltas no Oriente Médio.
"Devido ao cenário mundial complexo, que reflete no alto valor alcançado pelo petróleo, a LAN se verá obrigada a aumentar o preços das passagens aéreas para rotas internacionais", disse a empresa por meio de um comunicado.
A companhia, que detém mais de metade do tráfico aéreo internacional com origem no Chile, afirmou que a alta das passagens é "menor" do que a do combustível.
Em 2010, a LAN, que está em processo de fusão com a TAM, teve lucro líquido de US$ 419,7 millhões, aumento de 81,6% ante o ano anterior.
Na útlima sexta-feira, o preço do barril do petróleo fechou em US$ 97,8 em Nova York e US$ 112 em Londres.


Após decolar, avião atinge ave e precisa voltar ao aeroporto
Voo da Webjet com 138 passageiros ia de Ribeirão para Brasília, na tarde de ontem

DE RIBEIRÃO PRETO

Um avião da Webjet que iria ontem à tarde de Ribeirão Preto para Brasília teve de retornar ao aeroporto Leite Lopes porque atingiu um pássaro logo após a decolagem. O incidente danificou pás de uma das turbinas.
Havia 138 passageiros a bordo e o voo saiu por volta das 16h. Segundo a assessoria de imprensa da empresa, a colisão com a ave não chegou a provocar um pouso de emergência. O avião retornou por "medida de segurança", conforme a Webjet.
Os passageiros tiveram de dormir em hotéis de Ribeirão, pagos pela companhia. Eles devem ser redistribuídos em voos de hoje da Webjet ou de outras empresas. A aeronave terá de passar por reparos antes de voar novamente.
Em novembro, o Daesp (Departamento Aeroviário do Estado de SP) divulgou um levantamento que identificou 25 espécies que "frequentam" o Leite Lopes e oferecem risco aos aviões que pousam e decolam no terminal ribeirão-pretano.
O estudo é feito em parceria com a Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), deve seguir até setembro e servirá, segundo o Daesp, para nortear estratégias para a retirada das aves dos arredores do aeroporto.
No dia 27 de dezembro, outro voo da Webjet, com destino a Curitiba, teve de retornar ao Leite Lopes porque, segundo a empresa, um pacote de pamonhas quentes teria provocado problemas técnicos no avião. Um sensor de temperatura acusou aquecimento no bagageiro.


MERCADO ABERTO
MARIA CRISTINA FRIAS - cristina.frias@uol.com.br

VOO INALTERADO
A mudança nas tarifas de pouso dos aeroportos brasileiros, anunciada pela Infraero, terá pouco impacto no transporte aéreo de carga.
Segundo a Gollog, serviço de cargas da Gol, o aumento representa menos de 1% do custo de suas operações.
A Azul Cargo afirma que não deixará de atender cidades por causa das tarifas.
TAM Cargo e ABSA não se pronunciaram sobre o tema.
É cedo para ver resultados, diz Walter Devito, da Associação Nacional do Transporte de Cargas e Logística.
"Vamos sentir os efeitos de acordo com o repasse ou não do valor pelas companhias aéreas", afirma.
As novas tarifas, que variam de acordo com o aeroporto e o horário, entram em vigor a partir de 14 de março.


PROGRAMA “TERRA LEGAL”
Regularização de terra na Amazônia cumpre 1% da meta
Contestações judiciais, desconhecimento da região e tentativas de fraude estão entre problemas enfrentados
Para coordenador-geral de programa federal, após superar essas dificuldades, 2011 "será o ano do Terra Legal"

DE BRASÍLIA

Maior programa de regularização fundiária da Amazônia desde a ditadura militar, o Terra Legal não decolou.
Lançado há um ano e oito meses, a partir da medida provisória 458 - apelidada por críticos de "MP da Grilagem"-, o programa deu até agora 554 títulos de terras a posseiros nos nove Estados da Amazônia Legal, ou apenas 1,1% da meta para o fim de 2010, de 50 mil títulos.
Em dados atualizados, o programa deverá avaliar quase 6% (51 milhões de hectares) do território nacional, nos quais estão 180 mil ocupações. Junto às dificuldades típicas da região, o maior entrave são as contestações judiciais da concorrência pública de R$ 93 milhões, que contratou 28 empresas para fazer o georreferenciamento (a medição dos imóveis).
Segundo o coordenador-geral do programa, Carlos Guedes, parte das empresas, sem experiência na Amazônia, começou a trabalhar a como se estivessem no cerrado ou na caatinga. "Quando deram de cara com a mata, identificaram que teriam muita dificuldade em cumprir os prazos", disse Guedes.
Entre os problemas, houve moradores que não foram encontrados, imprecisões na documentação e dificuldade para se deslocar na floresta.
Para o Ministério Público Federal, que acompanha o Terra Legal, o governo subestimou as dificuldades de um projeto dessa magnitude.
Ainda assim, o procurador da República Marco Antonio Delfino considera positiva a demora em fazer a titulação, pois ela tenderia a evitar atropelos e ilegalidades.
Desde a votação da medida provisória que o originou, o Terra Legal é criticado por ambientalistas, que veem a possibilidade de legalizar grandes grileiros - pessoas que se apropriaram ilegalmente de terras alheias.
Até agora, foram detectadas diversas tentativas de fraudar o programa para obter terras acima do limite de 1.500 hectares. Há casos de uso de "laranjas" e de fracionamento de grandes propriedades entre pessoas da mesma família.
Para detectar irregularidades, criou-se uma rede de inteligência fundiária, integrada por Abin (Agência Brasileira de Inteligência), Polícia Federal e Sipam (Sistema de Proteção da Amazônia), entre outros órgãos.
Guedes vê no Terra Legal a porta de entrada da regularização ambiental. Com os títulos, será possível identificar quem comete os crimes ambientais.
E diz que, como as empresas já começaram a entregar os dados sobre as medições, "2011 será o ano do Terra Legal". Ele espera terminar a avaliação das 180 mil ocupações até 2012.
(JOÃO CARLOS MAGALHÃES)


OPINIÃO
Disputas políticas afetaram programa desde o começo

EDUARDO SCOLESE
EDITOR-ASSISTENTE DE PODER

A maneira enviesada como o programa de regularização fundiária do governo foi construído ajuda a explicar sua quase estagnação.
Há três anos, por iniciativa do então ministro Mangabeira Unger (Assuntos Estratégicos), surgiu no governo Lula o apelo por uma força-tarefa emergencial para legalizar terras na Amazônia.
A ideia era criar uma agência específica para tocar esse projeto, vinculada à Presidência. Seria aberto concurso público para contratação de dezenas de técnicos.
O Ministério do Desenvolvimento Agrário, controlado desde 2003 por uma corrente minoritária do PT, enxergou no horizonte perda de status, cargos e orçamento.
Para contra-atacar, encampou o argumento segundo o qual o Incra, autarquia enferrujada sob seu controle, teria condições de ficar como responsável pela entrega de títulos de posse no campo.
Mangabeira pensava diferente, mas os petistas do Desenvolvimento Agrário bateram o pé, ampliaram metas e convenceram Lula a criar o Terra Legal -sob o comando do ministério e com servidores do Incra deslocados dos escritórios de origem.
Os objetivos do programa são louváveis: varrer os grileiros da floresta e beneficiar os posseiros que há décadas penam por documento de posse e créditos federais.
O problema é que regularizar terras na região não é simples como exibir slides no Planalto. O não cumprimento da meta do programa era esperado, como indicavam os balanços de assentamentos da reforma agrária ao longo do governo Lula.
Surpresa seria se uma autarquia sucateada e loteada por políticos como o Incra conseguisse cumprir plano montado num gabinete por quem mal conhece o clima da Amazônia e as terras da região definida como alvo.


TENDÊNCIAS/DEBATES
Democracia, soberania e altivez

LUÍS ROBERTO BARROSO

A divergência política em relação à extradição de Battisti será sempre legítima, mas dar-lhe cumprimento é questão de respeito ao Estado de Direito

Não vou gastar o pouco espaço que tenho na demonstração de que Cesare Battisti é inocente das acusações de homicídio que lhe foram feitas e, sobretudo, que não teve devido processo legal.
Não são essas as questões em discussão. Mas é próprio lembrar que os fatos pelos quais é acusado aconteceram há mais de 30 anos. O maior prazo de prescrição do Direito brasileiro é de 20 anos.
Ademais, seria enorme contradição o Brasil ter dado anistia para os dois lados, por fatos idênticos ocorridos no mesmo período, e "entregar" Cesare Battisti para uma vingança histórica tardia e infundada do governo da Itália.
A afirmação de que a Itália era uma democracia durante os anos de chumbo é um sofisma sem qualquer relevância jurídica ou política.
Estados Unidos e Brasil também são e, rotineiramente, suas cortes supremas invalidam julgamentos por violação do devido processo legal. No caso de Cesare Battisti, seu segundo julgamento na Itália no primeiro não foi sequer acusado de homicídio , baseado apenas em delações premiadas de pessoas já condenadas, tem passagens dignas de figurar em qualquer futura antologia de barbaridades jurídicas.
Detalhe: todos os acusadores premiados foram soltos após penas breves. Só Battisti, cujo papel na organização era totalmente secundário, foi condenado à prisão perpétua. O julgamento no STF ficou empatado em quatro a quatro.
Portanto, quatro ministros entenderam que a extradição não deveria ser concedida! Se fosse um habeas corpus, ele teria sido solto imediatamente.
Como era extradição, entendeu-se que o presidente da corte deveria votar. E, em hipótese incomum, deu o voto de Minerva em favor da acusação. Mais incomum ainda: a extradição foi autorizada contra a manifestação de dois procuradores-gerais, que consideravam válido o refúgio e se pronunciaram contra a entrega de Battisti!!!
No mesmo julgamento, decidiu-se, também por cinco a quatro, que a competência final na matéria era do presidente da República.
Dos cinco ministros que votaram nesse sentido, quatro afirmaram tratar-se de competência política livre. O quinto, o ministro Eros Grau, entendeu que a decisão, embora política e do presidente da República, deveria se basear no tratado de extradição entre Brasil e Itália.
E foi adiante: disse o fundamento e o dispositivo que o presidente poderia utilizar. Da forma mais clara e didática possível, acrescentou: se assim fizer, sua decisão não será passível de reexame pelo STF. Pois o presidente Lula seguiu à risca o parâmetro estabelecido.
Não concordo, mas entendo e tenho consideração pelo ponto de vista de quem era favorável à extradição. Mas isso, agora, já não está em questão. O presidente da República exerceu validamente sua competência constitucional, nos termos em que expressamente reconhecida pelo STF.
A divergência política em relação a ela será sempre legítima, mas dar-lhe cumprimento é uma questão de respeito ao Estado democrático de Direito e à soberania nacional.
Depois das manifestações impróprias e ofensivas da Itália, citando nominalmente o presidente brasileiro, talvez já seja mesmo uma questão de patriotismo.
Quando a França negou a extradição, nas mesmas circunstâncias, a Itália acatou respeitosamente. No nosso caso, veio de dedo em riste, acintosamente.
Não fará bem ao Brasil vulnerar suas instituições e impor uma humilhação internacional ao ex-presidente Lula, que deixou o cargo com mais de 80% de aprovação, para subservientemente atender a quem nos falta com o respeito.
LUÍS ROBERTO BARROSO, professor titular de direito constitucional da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), é advogado de Cesare Battisti no STF e, atualmente, "visiting scholar" na Universidade Harvard (EUA).

 FONTE: FOLHA DE SP

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