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sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

11de fevereiro de 2011 - CORREIO BRAZILIENSE


ORÇAMENTO
Corte deixa 28 mil vagas congeladas

Raios e nuvens carregadas anunciavam o clima pesado no Planalto: arrocho no Orçamento e salário mínimo impõem momento decisivo para governo Dilma
Medida drástica para conter a inflação, o contingenciamento de R$ 50 bilhões no Orçamento da União impõe uma barreira a uma legião de candidatos ao serviço público. As restrições anunciadas pela equipe econômica bloqueiam o preenchimento de 28.883 vagas, entre concursos previstos e já realizados. Até segunda ordem, estão suspensas ou adiadas as seleções de órgãos públicos como os Correios, o INSS, a Polícia Federal, o Ibama, o TSE e o Senado. Além de interromper a renovação de pessoal do funcionalismo, o arrocho congela as pretensões de reajuste salarial de diversas categorias, mobilizadas com sindicatos. O plano de redução de gastos terá um momento crítico na próxima semana. Se o Congresso aprovar o salário mínimo acima de R$ 545, o governo será obrigado a cortar investimentos ou o superavit primário.


Vagas no limbo e reações em cadeia
Renovação dos quadros funcionais de órgãos dos Três Poderes é prejudicada com o congelamento dos concursos e das nomeações de aprovados. Sindicatos de servidores que lutam por aumentos salariais já se mobilizam e ameaçam fazer greve

» Luciano Pires
» Cistiane Bonfanti

O tranco dado pelo governo no orçamento deste ano para ajustar as contas públicas à realidade e frear a inflação coloca na berlinda um total de 28.883 vagas distribuídas entre concursos previstos e já realizados. As restrições impostas pela equipe econômica respingam em vários órgãos dos Três Poderes, muitos dos quais com seleções em andamento ou prestes a serem homologadas. Alvo principal da tesourada de R$ 50 bilhões, anunciada anteontem pelos ministérios da Fazenda e do Planejamento, a administração federal terá de rever planos e gastos se quiser dar continuidade à renovação do quadro de pessoal que tanto marcou a era Luiz Inácio Lula da Silva.
Na fila de recrutamentos de 2011 estão pesos pesados como os Correios, o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), a Polícia Federal, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e o Senado. O presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP), recomendou ontem que os candidatos que aguardam pelo lançamento do edital para o concurso da Casa continuem estudando, embora a seleção para o preenchimento de 180 vagas e cadastro de reserva tenha sido adiada.
Aguardando autorização ou com editais em fase final de elaboração, esses e outros órgãos traçaram estratégias específicas de contratações ao longo de 2011 com base em calendários de aposentadorias previstas para os próximos anos — no setor público esse é um gargalo que se agrava anualmente — e em expectativas de ampliação do efetivo com vistas a prestar melhores serviços. A reversão de cenário paralisa boa parte dessas ações voltadas à área de recursos humanos.
O projeto de lei do Orçamento Geral da União enviado pelo governo ao Congresso Nacional em agosto do ano passado previa a abertura de até 40.549 vagas — quase a metade das 76,9 mil autorizadas em 2010. Dos postos existentes, até 34,9 mil, conforme a proposta, poderiam ser nomeados. Essa perspectiva de manter o fôlego das admissões foi radicalmente afetada depois que a ministra do Planejamento, Miriam Belchior, disse que as chamadas serão analisadas “com lupa”. Descartando a meta estipulada até então, Miriam justificou que novos ingressos de funcionários terão de ser tratados caso a caso.
Ao longo das últimas três semanas, os técnicos responsáveis pelos cortes orçamentários avaliaram relatórios enviados pelos ministérios contendo, entre outras coisas, prioridades de gastos e contratações indicadas pelos setores do governo. O enxugamento não preservou nenhuma pasta: todas as áreas, com exceção do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e dos projetos sociais, foram afetadas. Diárias, aluguéis e compras de carros e imóveis e tudo mais que diga respeito a gastos de custeio para a manutenção da máquina passarão por um rigoroso pente-fino. O governo também pretende fazer uma superauditoria na folha de pagamentos, inclusive trocando informações com os estados, para identificar acúmulos indevidos de salários, aposentadorias e pensões.
Entre os concursos em andamento ou que aguardam apenas para nomear os aprovados destacam-se o Instituto Rio Branco, os ministérios do Meio Ambiente e do Turismo, o Superior Tribunal Militar (STM), o Ministério Público da União (MPU) e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). As convocações, mesmo no caso dos órgãos que gozam de independência orçamentária, devem sofrer atrasos consideráveis. Em nota, a Associação Nacional de Proteção e Apoio aos Concursos (Anpac) minimizou os efeitos das medidas. Para a entidade, o congelamento determinado pelo governo exclui estatais, autarquias, o Legislativo, o Judiciário e todas as seleções autorizadas.

Reajustes
O corte recorde de R$ 50 bilhões também atinge em cheio qualquer possibilidade de reajustes salariais pretendidos pelos servidores federais em 2011. No Executivo, pelo menos 30 carreiras pressionam o governo a reabrir negociações iniciadas no ano passado com vistas a corrigir tabelas ou planos de reestruturações aprovados pelo Congresso Nacional. O mesmo vale para os servidores do Judiciário — cerca de 100 mil — e do MPU, que reivindicam um reajuste salarial médio de 56% a um custo de R$ 7,5 bilhões. Não há recursos previstos para essa finalidade no orçamento.
Sindicatos ligados aos Três Poderes prometem se unir e lançar, na próxima semana, uma campanha salarial unificada (leia mais na página 3). Alguns setores planejam fazer paralisações de 24 horas e até greves por tempo indeterminado.


ORÇAMENTO
Na prática, a postura é outra
Segundo a oposição, as decisões anunciadas no início do governo Dilma Rousseff são as mesmas que a petista atribuía a Serra durante a campanha pela Presidência, como a suspensão de concursos públicos e mudanças na estrutura do Bolsa Família

Izabelle Torres

As decisões anunciadas pela equipe de Dilma Rousseff mais parecem uma lista de consolidação das ameaças divulgadas durante a campanha eleitoral como primeiras medidas de um possível governo de José Serra (PSDB). Ao longo dos meses que antecederam a disputa, petistas e simpatizantes da candidatura que representou o continuísmo anunciavam que a gestão tucana estaria disposta a mudar o rumo do governo Lula, cortando a proposta de Orçamento apresentada no fim do ano passado e encolhendo a máquina de investimentos e contratações. Pouco mais de quatro meses separam o calor dessas discussões dos anúncios desta semana. Uma realidade que tem sido seguida de notícias que seriam uma crônica anunciada se não fosse o fato de o script ser protagonizado pelo governo do PT: integrado justamente por quem acusava a oposição de planejar tais medidas.
Durante a campanha, o candidato José Serra teve de modificar um dos programas eleitorais gratuitos para negar as notícias que circulavam na internet anunciando que ele estava disposto a suspender a convocação de concursados aprovados e de frear a realização de novas seleções públicas. “Tivemos de mudar tudo para que o Serra aparecesse na televisão dizendo que foi o governador que mais contratou concursados. Foi uma resposta a uma rede de boatos que surgiam a todo tempo. Acreditamos que essa ameaça feita por nosso opositores interferiram no desempenho ruim do nosso candidato principalmente em Brasília”, avalia Juthay Júnior (PSDB-BA), um dos coordenadores da campanha tucana à Presidência.
Mas essa não é a única demonstração de afinidade entre o que os governistas diziam que José Serra faria e o que Dilma Rousseff tem decidido nesses primeiros meses de governo. Além do arrocho de gastos que vai resultar na suspensão de concursos e no corte das emendas parlamentares, a prática petista se distancia do discurso eleitoral quando o assunto é a privatização de aeroportos, alternativas ao Bolsa Família e até reajustes do salário mínimo.

Críticas
Pelo menos em três dos programas eleitorais gratuitos do PT, o tempo disponível foi usado para criticar privatizações e acusar os governos do PSDB de recorrerem à prática frequentemente. Na internet, o tema sempre constava dos manifestos contrários ao candidato tucano. Agora, no mundo real, o governo de Dilma Rousseff começa a perceber que, sem privatizar, será impossível concluir as obras de estruturação dos aeroportos a tempo da realização das Olimpíadas no Brasil.
Outra fonte de votos dados à Dilma Rousseff — que agora tem tratamento diferente do que o anunciado durante a campanha eleitoral — é o programa Bolsa Família. No decorrer da disputa presidencial, o PT falava apenas em ampliação dos beneficiários, e a oposição tinha de desmentir diariamente o desejo de reduzir o programa ou acabar com ele. Agora, a nova ministra do Desenvolvimento Social, Tereza Campello, adota o discurso da campanha fracassada do PSDB e diz que o principal desafio do governo é o de encontrar uma “porta de saída” para os dependentes do auxílio entrarem no mercado de trabalho. Campello aceitou comandar a pasta porque a presidente concordou com a implantação de uma política destinada a reduzir o número de brasileiros que dependem do programa.
O polêmico reajuste do salário mínimo é outra mudança de discurso que não fazia parte do enredo anunciado na campanha de Dilma Rousseff. Com a sucessão de aumento real dado pelo governo Lula, a então candidata pouco detalhava valores durante os pronunciamentos que antecediam a eleição. Dizia apenas que daria continuidade a política adotada pela equipe do então presidente. Agora, propõe reajuste abaixo do esperado. “Se os brasileiros analisarem bem, vão ver a lista enorme de coisas que diziam que o governo de Serra iria fazer para prejudicar nossa candidatura e o que estão fazendo agora. Eles pensavam em fazer e jogavam o boato de que éramos nós os idealizadores dessas propostas. Uma tática eleitoral que deu certo, mas não foi honesta”, critica Juthay Júnior.

Mudança de planos
Nos primeiros meses no comando do país, Dilma Rousseff anunciou medidas que foram tratadas na campanha eleitoral como ameaças em um provável governo tucano. Veja alguns exemplos:

 - Suspensão de novos concursos públicos
 - Cancelamento das convocações de candidatos aprovados em concursos
 - Privatização de aeroportos
 - Arrocho do salário mínimo e reajustes sem aumento real
 - Freio nos investimentos e redução de gastos
 - Corte no orçamento proposto pela equipe do governo Lula


Falta convencer o mercado

Gabriel Caprioli

Os analistas do mercado financeiro receberam com ressalvas o anúncio de corte de R$ 50 bilhões no Orçamento deste ano. Ao prometer o ajuste, os ministros Guido Mantega (Fazenda) e Miriam Belchior (Planejamento) esperavam alterar as expectativas dos economistas, que esperavam o tamanho da tesourada para fazer as contas e projetar, por exemplo, a trajetória da inflação e dos juros para 2011. Apesar de estar em linha com o que era esperado, o bloqueio não foi suficiente para convencer que o governo está disposto a apertar o cinto.
“Para começar, o corte foi feito em cima de uma proposta de orçamento bastante inflada. Além disso, os cortes só terão efeito ao longo do tempo porque estão focados, segundo os ministros, em medidas administrativas”, avaliou Carlos Thadeu de Freitas Gomes, economista-chefe da Confederação Nacional do Comércio (CNC) e ex-diretor do Banco Central. Para ele, o esforço prometido pelo governo se traduzirá mais em uma racionalização de gastos do que em corte efetivo.
As declarações do ministro Mantega de que algumas “exceções” podem modificar a programação orçamentária e resultar na liberação de parte do bloqueio aumentou as dúvidas. “Ele não foi incisivo. Anunciou um corte, mas deixou a porta aberta para emergências e não deixou claro de onde vai cortar. A forma como o bloqueio foi divulgado, pouco claramente, decepcionou”, afirmou a economista-chefe da corretora Icap Brasil, Inês Filipa. Em sua avaliação, o corte de R$ 50 bilhões só será realizado efetivamente se atingir investimentos ou a área social. “Mas o mercado ficou confuso. Alguns analistas acharam positivo. Aqui, não mudamos nossa percepção”, comentou.
As cotações dos juros futuros — indicador que mostra diariamente a estimativa de avanço da taxa básica Selic nos próximos meses — fecharam o dia com pequenas oscilações e sem tendência definida, sinal de que o anúncio do contingenciamento alterou pouco a percepção do investidor. O dado é negativo, uma vez que se esperava que o corte levasse os aplicadores a estimar juros futuros menores.
O diretor de Política Econômica do Banco Central, Carlos Hamilton Araújo, afirmou acreditar que o ajuste fiscal vai ajudar a conter a atividade econômica e, portanto, contribuir para que o cenário inflacionário seja mais favorável. Menor pressão do governo nos preços, na prática, contribui para reduzir a inflação. Para os economistas, o cumprimento efetivo do bloqueio de R$ 50 bilhões teria impacto equivalente ao aumento da taxa básica Selic em 1 ponto percentual.

Aumento preventivo
Quando os analistas estão pessimistas em relação ao futuro da inflação e elevam suas projeções, ocorre um fenômeno conhecido como profecia autorrealizável, que é o aumento preventivo de preços por parte dos produtores e comerciantes. Aquilo que era uma previsão vira inflação porque ninguém quer perder o poder do dinheiro. Controlar essas expectativas é um dos esforços do governo.


FUNDOS DE PENSÃO
PMDB briga pelo comando da Previc
De olho em um mercado com patrimônio de R$ 512 bilhões, ministro indica seu apadrinhado para autarquia

Vânia Cristino

Atento a um orçamento de cerca de R$ 33 milhões anuais e atraído pela possibilidade de fiscalizar os poderosos fundos de pensão — entidades fechadas de previdência complementar que, juntas, possuem um patrimônio superior a R$ 512 bilhões —, o PMDB quer ocupar o comando da Superintendência Nacional de Previdência Complementar, a Previc. Integrante do partido, o ministro da Previdência Social, Garibaldi Alves, deve indicar para o cargo de diretor superintendente, em substituição a Ricardo Pena, o ex-vice-presidente da Área Internacional do Banco do Brasil José Maria Rabelo.
Ao contrário de outras agências do governo, como a Agência Nacional de aviação Civil (Anac), a diretoria da Previc não tem mandato. Seus diretores também estão livres de serem sabatinados pelo Senado Federal — uma falha da lei que instituiu a autarquia especial vinculada ao Ministério da Previdência Social.

No projeto enviado pelo governo Lula para a criação da
Previc, constava mandato de cinco anos para a diretoria da autarquia especial, bem como a necessidade da aprovação do Senado Federal dos nomes indicados pelo governo. Essa parte caiu durante a votação da Câmara dos Deputados e, para evitar adiamentos, o Senado acabou aprovando o texto como ele foi editado pelos deputados. Na época, o líder do governo, senador Romero Jucá (PMDB-RR), comprometeu-se com o senador Heráclito Fortes (DEM-PI) em mandar uma emenda para consertar o erro, mas nada foi feito.

Diretorias
Com isso, o diretor superintendente, Ricardo Pena, pode perder o lugar com apenas um ano no cargo. Ele já era da área antes de ir para a Previc. Foi titular da Secretaria de Previdência Complementar (SPC), órgão que, antes da criação da superintendência, tinha a responsabilidade de fiscalizar o setor. Com a criação da Previc, em dezembro de 2009, a SPC perdeu a função e limitou-se a ditar as políticas globais para os fundos de pensão. O novo órgão fiscalizador ganhou ainda autonomia financeira: tira seu sustento dos fundos de pensão, por meio da Taxa de Fiscalização e Controle da Previdência Complementar (Tafic).
Além do diretor superintendente, existem outros quatro cargos de comando na Previc: as diretorias de Fiscalização, Análise Técnica, Administração e Assuntos Atuariais, Contábeis e Econômicos. Em junho do ano passado, a Previc ganhou destaque. Até então, a autarquia ocupava salas acanhadas no sétimo andar do Ministério da Previdência Social, dividindo o espaço com a SPC. Com dinheiro em caixa, proveniente do primeiro pagamento da Tafic, o órgão mudou de endereço e agora ocupa vários andares de um prédio no Setor Bancário Norte da capital.
Cotado para a Previc, José Maria Rabelo é um funcionário muito estimado no Banco do Brasil. Funcionário de carreira da instituição, ele passou por vários cargos no banco. Antes de chegar à Vice-Presidência, cargo no qual se aposentou, foi de gerente de agência a superintendente estadual no Rio Grande do Norte — estado do ministro Garibaldi Alves.

Cofre cheio
Cada uma das 369 entidades de previdência complementar do país devem pagar à Superintendência Nacional de Previdência Complementar (Previc), a Taxa de Fiscalização e Controle da Previdência Complementar (Tafic). Os fundos de pensão pequenos recolhem apenas R$ 150 por quadrimestre, mas os grandes, com patrimônio acima de R$ 60 bilhões, pagam até R$ 2,2 milhões.


OPINIÃO
O sonho de Nabucodonosor

Frei Betto
Escritor é autor de Calendário do poder (Rocco), entre outros livros

Os países ricos do Ocidente, cuja democracia se baseia no poder do dinheiro, não têm princípios, apenas interesses. Acusam Cuba de ser uma ditadura que não respeita os direitos humanos por não admitirem o caráter socialista daquela revolução que, há mais de 50 anos, resiste às agressões do maior império econômico e bélico da história da humanidade.
No entanto, tecem loas à China. Fazem vista grossa ao regime escravocrata de mão de obra barata, onde se fabrica tudo aquilo que, no Ocidente, exigiria pagar salários mais altos, reduzindo a margem de lucro das empresas ocidentais. Inúmeros produtos em oferta em nossas lojas, embora grifados por marcas originárias do Ocidente, são “made in China”.
Para governos como o dos EUA, o do Reino Unido, o da França e o da Alemanha, o fato de um ditador como Hosni Mubarak ocupar, por 30 anos, o poder no Egito, não tem a menor importância. Desde que sirva a seus interesses geopolíticos numa região explosiva. Vale para Mubarak o que John Foster Dulles dizia do ditador Anastácio Somoza, da Nicarágua: “É um filho da p., mas é nosso filho da p.”
De olho no petróleo, os governos ocidentais sempre respaldaram os governos tirânicos do mundo árabe. Negócios, negócios, princípios à parte. Qual potência europeia rompeu com uma das tantas ditaduras militares que assolaram a América Latina nas décadas de 1960 e 1970?
O Ocidente nunca se incomodou com a ausência de eleições periódicas nos países árabes, a opressão da mulher, a perseguição aos homossexuais, o luxo nababesco dos governantes frente à miséria da grande maioria da população. Quantos ditadores africanos engordam os cofres dos bancos europeus?
Agora os EUA estão como o rei da história de Hans Christian Andersen: nu, despido de sua arrogância supostamente democrática, de sua prepotência imperial. E o pior, colocados entre a cruz e a caldeirinha: se Mubarak permanece, a Casa Branca sustenta uma ditadura e despreza o clamor do povo egípcio. Se é derrubado, há o risco de o Egito se transformar, como o Irã, numa nação islâmica, hostil a Israel e aos propósitos ocidentais.
Narra a Bíblia que o profeta Daniel (2, 31-36) foi convocado para interpretar um sonho que tanto inquietava o rei Nabucodonosor, da Babilônia: “Era uma grande estátua, alta e muito brilhante. Ela estava bem à frente de Vossa Majestade e tinha aparência impressionante. A cabeça era de ouro maciço; o peito e os braços eram de prata; a barriga e as coxas, de bronze; as canelas de ferro e os pés, parte de ferro e parte de barro. Vossa Majestade contemplava a estátua quando, sem ninguém jogar, caiu uma pedra que bateu exatamente nos pés de barro e ferro da estátua, quebrando-os. Em segundos, tudo desmoronou. Ferro, barro, bronze, prata e ouro ficaram como palha no terreiro em final de colheita, palha que o vento carrega sem deixar sinal. Depois, a pedra que tinha atingido a estátua se transformou numa enorme montanha que cobriu o mundo inteiro”.
A pedra, no caso do mundo árabe, é a ânsia popular de democracia entendida como justiça social e paz. O que pensa um iraquiano vendo seu país há anos dominado por tropas ocidentais que tratam os habitantes como escória da humanidade? O que pensa um afegão vendo aviões ocidentais bombardearem aldeias, matando crianças, mulheres, idosos, sob a desculpa de se tratar de um refúgio talibã?
A pedra é a cultura religiosa, muçulmana, que grassa naqueles países, e que nada tem a ver com o suposto cristianismo do Ocidente. Em nome de Deus e de Jesus, o Ocidente subjugou, durante séculos, a África, a Ásia e a América Latina. Escravizou habitantes, extorquiu riquezas, transferiu para a Europa preciosidades arqueológicas, como a Pedra de Roseta — hoje no Museu Britânico —, fragmento de uma estela de granodiorito do Egito antigo, cujo texto foi crucial para a compreensão moderna dos hieróglifos egípcios. Sua inscrição registra um decreto promulgado em 196 a.C., na cidade de Mênfis, em nome do rei Ptolomeu V.
O pensamento islâmico não distingue a fronteira entre religião e política. Esta deve ser monitorada por aquela. E a autoridade religiosa é encarada, como ocorria no Ocidente medieval, como detentora do poder político.
Para tal conjuntura, o Ocidente só conhece uma resposta: armas, guerras, ocupações, subornos e ditaduras. Porque é incapaz de empreender o diálogo interreligioso, de reconhecer o direito daqueles povos à autodeterminação, de pautar-se por princípios e não pela voracidade obsessiva do mercado por lucro.
Se o fundamentalismo islâmico incute em jovens a mística do martírio, introduzindo uma forma de terrorismo incontrolável, o fundamentalismo do mercado incute nos ocidentais a convicção de que igrejas e mesquitas devem ceder lugar aos shopping centers, templos de consumismo e miniaturização do paraíso na Terra.
Eis a pergunta que, esta semana, se repete em Dakar, no Fórum Social Mundial, e exige resposta urgente: Um outro mundo é possível?

Fonte: CORREIO BRAZILIENSE

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