DESTAQUE DE CAPA
Insurgentes tomam cidades perto de Trípoli, principal reduto de Kadafi
Mercenários e parte do Exército ainda leal ao regime patrulham as ruas da capital para evitar a chegada dos rebeldes, que já controlam o leste do país
Andrei Netto - O Estado de S.Paulo
Duas cidades a oeste de Trípoli, na Líbia, região que sustenta Muamar Kadafi no poder, caíram em mãos dos insurgentes nas últimas 36 horas. O levante se deu nas cidades de Zuara, a 140 quilômetros da capital, e Zauiyah, a 50 quilômetros, e derrubou dois pilares estratégicos da segurança do regime.
Além disso, a perda progressiva de poder do ditador nas cidades do país vem revelando a carnificina promovida pela polícia, Exército e mercenários: em Benghazi, mais de 2 mil pessoas podem ter sido assassinadas durante os protestos, segundo testemunhos de estrangeiros que deixaram o país.
A tomada de Zuara e Zauiyah pelos rebeldes foi confirmada na manhã de ontem, quando testemunhos de líbios, tunisianos e egípcios relataram uma batalha sangrenta na região. Só em Zauiyah, pelo menos 90 pessoas teriam sido mortas, segundo informou ao Estado um morador da cidade que deixou o país à tarde pela fronteira de Dehiba, 250 km ao sul. "As mortes são obra de mercenários pagos por Kadafi. Mas o oeste do país também está se libertando. Em breve, só restará Trípoli", garante o líbio, que pediu para não ter o nome divulgado.
Nos dois municípios, os "comitês populares", órgãos dirigentes do regime, teriam sido dissolvidos e o comando da polícia e das Forças Armadas teria desertado e se unido aos rebeldes. O avanço dos insurgentes no oeste aumenta a fragilidade do regime, que já havia perdido cidades do leste do país como Ajdabiya, a 847 quilômetros da capital, Tobruk e Benghazi, ambas a 1.000 quilômetros da capital. "Não há mais governo a leste de Trípoli. Queremos dominar todo o país até a sexta-feira da semana que vem", disse outro líbio ouvido em Dehiba.
Também ontem dois terminais petroleiros do país, em Ras Lanuf e Marsa el-Brega, situados no Golfo de Syrte, passaram ao controle dos rebeldes. Das duas plantas partem 1,5 milhão de barris de petróleo por dia, a maior parte da produção do país. O domínio das instalações de petróleo e gás é considerado fundamental para determinar a sorte do regime de Kadafi.
Trípoli, porém, segue sob o controle de militares e mercenários estrangeiros, segundo a agência Associated Press, Membros de grupos pró-Kadafi teriam invadido hospitais de Trípoli na terça e quarta-feiras e executado rebeldes feridos que recebiam atendimento. "Eles (militares e mercenários) levaram os cadáveres para fazê-los desaparecer", afirmou Slimane Bouchuiguir, secretário da Liga Líbia de Direitos Humanos.
O Comitê do Povo pela Segurança, outro órgão do regime exortou os opositores a abandonar as armas. Recompensas também foram oferecidas a quem oferecese informações sobre líderes das manifestações. "Os que entregarem suas armas e se arrependerem serão isentados de processos judiciais", disse o comitê, em nota oficial. "O comitê apela aos cidadãos que informem sobre os que manipularam os jovens ou os corromperam com dinheiro, material ou pílulas alucinógenas." Combinada à repressão, o regime oferece a perspectiva de mudanças. Saadi Kadafi, filho do ditador, afirmou ao jornal "Financial Times" que o regime passará por transformações, com seu pai no poder.
Líder culpa Bin Laden e Al-Qaeda por insurgência
Andrei Netto - O Estado de S.Paulo
Em novo pronunciamento à TV estatal, o líder líbio, Muamar Kadafi acusou "jovens drogados" de promover os distúrbios contra o governo e culpou a organização terrorista Al-Qaeda por incitá-los à revolta. "Esses jovens vão comprar drogas em Trípoli", disse, associando-os à Al-Qaeda - numa tentativa de associar os insurgentes com o terror islâmico. "Isso é claramente influenciado por (Osama) Bin Laden."
"Sou patriota e estou dando conselhos a vocês. Não tenho autoridade para assinar leis, ou algo assim. A rainha Elizabeth da Inglaterra também não tem essa autoridade", prosseguiu Kadafi, reiterando o pronunciamento anterior de que não teria como renunciar porque, formalmente, não exerce nenhum cargo.
NOTAS & INFORMAÇÕES
Roubo nos portos
Receber, de compradores do exterior, reclamações de que as mercadorias que encomendaram não chegaram de acordo com o contratado, tanto em quantidade quanto em qualidade, é muito constrangedor para os exportadores brasileiros de produtos agrícolas. Essas queixas, que se tornam cada vez mais comuns, acarretam grandes prejuízos e podem significar a perda de mercado no futuro, em detrimento da imagem do Brasil como fornecedor. A grande maioria dos exportadores toma os cuidados necessários para atender às encomendas, mas seus esforços são frustrados pelos desvios de cargas nos portos, um tipo de crime que cresce à medida que avançam as vendas de commodities agrícolas. O que significa que a exportação brasileira, além das deficiências de infraestrutura, ainda se vê diante de falhas do policiamento portuário.
A situação tem deixado os exportadores extremamente preocupados: "Fizemos todos os esforços para reverter esse problema, mas não conseguimos", disse ao Estado (21/2) o presidente da Associação Brasileira de Exportadores de Cereais (Abec), Sérgio Mendes. "Tivemos de levar o assunto à Secretaria da Receita Federal, que começou a investigar a questão." O governo demorou para tomar providências, mas, em resposta a denúncias de exportadores, 130 mandados de prisão foram expedidos nos últimos quatro meses pela Polícia Federal (PF) contra roubos de carga em portos de São Paulo, Paraná e Santa Catarina. Esta é a segunda operação do gênero efetuada pela PF. A primeira foi deflagrada em outubro do ano passado.
Ações criminosas são comuns em todos os portos do mundo, mas o que se observa no Brasil é uma flagrante ausência de vigilância nos armazéns e nas áreas de manejo de mercadorias nos terminais. Antes da Constituição de 1988, existia no País a Polícia Portuária Federal, que foi substituída pela Guarda Portuária, subordinada à Secretaria Especial de Portos, hoje vinculada à Presidência da República. Seja porque seus efetivos são insuficientes em face do maior movimento dos terminais, seja porque a Guarda não esteja equipada para fazer um trabalho eficiente de repressão, o fato é que as ações realizadas nos portos têm sido conduzidas pela Polícia Federal juntamente com a Polícia Militar dos Estados.
Os desvios de cargas à espera de embarque nos portos têm sido de grande vulto. No Porto de Paranaguá (PR), por exemplo, as investigações detectaram o roubo de 4 mil toneladas de soja e farelo, no valor de US$ 3 milhões. Isso seria praticamente impossível sem a conivência ou a participação direta de pessoas ligadas à operação portuária. Além disso, há receptadores que reexportam as mercadorias ou as dirigem para o mercado interno. Já foram identificadas quadrilhas organizadas que atuam nos portos brasileiros, que agrupam, além de criminosos comuns, caminhoneiros e funcionários das companhias estatais que operam os terminais, policiais, fiscais estaduais e donos de empresas de fachada, que servem para emitir notas frias.
Como se pode deduzir, essas quadrilhas têm fácil acesso às instalações portuárias, sendo capazes, como foi apurado, de substituir por areia os produtos subtraídos de uma carga a embarcar, colocando boa parte dela a perder. O pior é que práticas dessa ordem são desmoralizantes para o País, hoje um dos maiores exportadores mundiais de produtos agrícolas, com tendência firme de crescimento em face da expansão da demanda mundial de alimentos.
Com os interesses econômicos nacionais em jogo, o que vem acontecendo deveria determinar uma ação enérgica por parte da Secretaria Especial de Portos em colaboração com outros órgãos do governo. Não se sabe se a proposta de emenda constitucional em curso no Congresso Nacional, prevendo que a Guarda Portuária volte a ter o status anterior a 1988, teria o condão de resolver o problema. Seja como for, é obrigação do Estado, por meio das companhias que administram os portos públicos, delegados ou não a governos estaduais, prover a segurança indispensável para a atividade exportadora, tanto de produtos agrícolas como de manufaturados.
ECONOMIA
Dilma começa a pagar as contas herdadas de Lula
Gastos do governo crescem 24% no 1º mês; para fazer o superávit o aumento da receita ajudou mais do que o controle de gastos
Edna Simão e Adriana Fernandes - O Estado de S.Paulo
A equipe econômica de Dilma Rousseff prometeu arrocho fiscal em 2011 para ajudar na política de combate à inflação, mas no primeiro mês do ano já registrou uma alta de 24% das despesas do governo. Para fazer o superávit primário do governo central de R$ 14,09 bilhões (economia para pagamento de juros) obtido em janeiro - o segundo maior da história para o mês - o Planalto contou mais com o aumento das receitas do que um efetivo controle dos gastos.
O governo central, que reúne as contas do Tesouro Nacional, INSS e Banco Central, não conseguiu fazer um controle maior das despesas em janeiro porque teve que pagar gastos assumidos em 2010, no governo Lula. O pagamento dessas despesas foi postergado em dezembro para garantir o cumprimento da meta de superávit primário das contas do setor público no ano passado. Esse tipo de manobra nos últimos dias do ano é comum no governo, mas em 2010 o instrumento foi utilizado em maior escala. A política fiscal deste ano ainda sente os efeitos do período de crescimento explosivo das despesas verificado no final do governo Lula. Outra consequência será o cancelamento recorde de despesas empenhadas de anos anteriores, principalmente de projetos que não deram certos ou de emendas de parlamentares que não foram reeleitos.
Restos a pagar. O secretário do Tesouro, Arno Augustin, antecipou ontem que o governo só pretende pagar R$ 41,1 bilhões dos "restos a pagar" -compromissos de gastos assumidos em anos anteriores e transferidos para o Orçamento deste ano.
No mínimo, o cancelamento das despesas será de R$ 16 bilhões. Esse cálculo considera apenas os "restos a pagar" de investimentos que somaram R$ 57,1 bilhões no ano passado. Como o "restos a pagar" engloba todas as despesas, os cancelamentos facilmente ultrapassarão os R$ 16 bilhões. O valor total dos restos a pagar só será divulgado na próxima quarta-feira com o decreto que trará o detalhamento do corte de R$ 50 bilhões das despesas do Orçamento.
"É normal em janeiro o pagamento de muitos empenhos já feitos", disse Augustin. Para ele, o aumento das despesas em janeiro não pode ser observado como tendência para o ano. As despesas com custeio vão cair, disse ele, mas os gastos com investimentos devem crescer. Os números divulgados mostram um crescimento em janeiro das despesas de custeio de 35,3% e de investimentos, de 85,3%, em relação ao mesmo mês de 2010. Os gastos com investimentos prioritários, incluídos no PAC, tiveram alta de 176%. Mas esse ritmo de crescimento vai desacelerar um pouco.
Mesmo com o corte, o secretário avaliou que o cenário de forte expansão das receitas garante "condições fiscais bem mais tranquilas" do que em 2010 para o cumprimento da metas de superávit. No ano passado, as receitas ainda estavam impactadas pelos efeitos da crise financeira. Agora, o cenário é outro e governo conta com uma perspectiva de crescimento "significativo" de receitas. Ele assegurou que o desempenho favorável das receitas não vai reduzir o corte de R$ 50 bilhões. "De jeito nenhum. O corte será feito como o informado", garantiu.
Pagamentos adiados
R$ 14,09 bi - Foi o superávit primário do governo central obtido em janeiro , o segundo maior resultado da história para o mês
R$ 41,1 bi - É o total de restos a pagar que o secretário do Tesouro, Arno Augustin, antecipou que o governo só pretende pagar.
MAPA DA VIOLÊNCIA
Mapa mostra queda de homicídios em SP e explosão de violência no Nordeste
Lisandra Paraguassu, Ligia Formenti e Rafael Moraes Moura - O Estado de S.Paulo
A região do País que mais sofre com a pobreza agora submerge na violência. Em uma década (1998-2008), os homicídios no Nordeste aumentaram 65%; os suicídios, 80%; e os acidentes de trânsito, 37%. Entre a população jovem foi pior: crescimento de 49% nos acidentes, 94% nos homicídios e 92% nos suicídios. Os dados estão no Mapa da Violência 2011 - Os Jovens do Brasil.
O estudo preparado pelo pesquisador Julio Jacobo Waiselfisz e apresentado ontem pelo Instituto Sangari e pelo Ministério da Justiça ainda mostra queda na violência em São Paulo. Em dez anos, o Estado reduziu em 62,4% a taxa de homicídios na população em geral e em 68% entre os jovens (15 a 24 anos). Na capital, os números são ainda mais impressionantes: queda de 76% e 81%, respectivamente.
Hoje, São Paulo é a capital onde morrem, proporcionalmente, menos jovens no País. "Houve recuperação do aparato repressivo, depuração das polícias, ganhos tecnológicos nas investigações, melhoria dos sistemas de informação, mas também uma mobilização da sociedade", diz Jacobo.
No outro extremo, Alagoas e Bahia, que figuravam na parte de baixo do ranking da violência em 1998, pularam para as primeiras posições. Outros, como o Maranhão, quase quadruplicaram as taxas de homicídio. Saíram de índices europeus, de 5 por 100 mil habitantes, para 20 por 100 mil.
A explicação pode estar nos males que vêm com as boas notícias. Nos últimos anos, novos polos econômicos surgiram por todo o Nordeste e alguns Estados no Norte, como o Pará. Mas, enquanto chegavam o dinheiro, os empregos e mais moradores, o Estado ficava para trás. "Há polos praticamente sem a presença do Estado", afirma Jacobo.
No mundo. O Brasil tem 26,4 mortes por 100 mil habitantes e está em 6.º em um ranking de 50 países que analisam mortes por homicídios. Já esteve em situação pior, no 3.º lugar.
Campeã de mortes, Alagoas tem 'Iraque' e 'Vietnã'
'Aqui dívida de droga é cobrada à bala', diz autônomo; na região metropolitana, traficantes já adotaram até pedágios nas ruas
Ricardo Rodrigues - O Estado de S.Paulo
Alagoas, o Estado com o menor Índice de Desenvolvimento Humano do País, 0,677, tem, hoje, mais problemas para cuidar além da miséria. A violência chegou a uma situação tão crítica que lugarejos passaram a ser tratados como praças de guerra e ganharam nomes como Iraque, Coreia e Vietnã. São bairros da periferia ou povoados da região metropolitana, onde impera a "lei do silêncio" e quem reclama ou dedura os traficantes pode pagar com a própria vida.
Em dez anos, a violência cresceu 2,7 vezes e o Estado lidera no País em mortes de mulheres, moradores de rua e sem-terra. Além disso, o Mapa da Violência 2011 mostra que dez municípios alagoanos fazem parte das cem cidades brasileiras consideradas as mais violentas. Entre os jovens, notam-se sintomas de catástrofe: o número de homicídios cresceu 343% e a taxa por 100 mil habitantes quadruplicou. Entre jovens e negros é ainda pior: alcançou 155,6 por 100 mil - para cada jovem branco assassinado, morrem outros 15 negros. Esse número só é pior na Paraíba, onde morrem quase 20 jovens negros para cada branco.
"Aqui dívida de droga é cobrada à bala. É por isso que dou graças a Deus de não ter filho viciado", diz o autônomo José Claudio da Silva, de 57 anos, pai de nove filhos, o menor deles com 13 anos. Ele mora em uma das 4 mil casas do conjunto Habitacional Nova Esperança, que de tão violento passou a ser conhecido como Iraque, em uma referência ao país do Oriente Médio.
Localizado na zona rural de Marechal Deodoro, primeira capital do Estado e berço do proclamador da República, o conjunto foi construído há menos de dez anos. Em pouco tempo, os moradores viraram reféns de traficantes. Quem não colaborava ou se intrometia nos negócios morria.
Após uma chacina, a polícia começou a investigar a ação dos bandos na região. "Somente com a prisão dos chefões do tráfico e dos principais colaboradores a violência diminuiu, mas o medo continua", afirma o radialista José de Lima, de 44 anos.
Pedágio. O avanço do tráfico faz pessoas pagarem pedágio a traficantes para poder transitar em bairros populares, nos grotões e na Grande Maceió, em Rio Largo, Pilar, Marechal Deodoro, Satuba e Paripueira.
Mas a situação de violência é histórica. Nos anos 50, durante a Guerra das Coreias, parte do bairro do Ouricuri virou "Coreia", pela quantidade de homicídios registrados naquela região, no Centro de Maceió.
O secretário de Defesa Social, coronel Dário César, admite que a situação é grave, mas pode ser revertida. "Por isso, implementamos o projeto de Polícia Comunitária." Já o presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil em Alagoas (OAB/AL), Gilberto Irineu de Medeiros, diz que os crimes praticados contra moradores de ruas, viciados, homossexuais e moradores de rua precisam ser logo solucionados. "A impunidade é quem alimenta o crime no Estado e isso ocorre porque as vítimas são pobres."
DUAS PERGUNTAS PARA...
Julio Jacobo, SOCIÓLOGO, COORDENADOR DO MAPA
1. Os dados do último Mapa da Violência mostram um crescimento desproporcional em todos os tipos de mortes violentas na Região Nordeste. Qual a explicação?
Há quem fale em uma "nordestinização". Eu não diria isso. Eu falo de espalhamento da violência. Há Estados da Região Norte e também da Região Sul em que acontece exatamente o mesmo fenômeno. Estados como o Pará e o Paraná, em que está acontecendo a mesma coisa. É uma desconcentração da violência.
2. O que aconteceu nessa década (1998-2008) para que regiões e cidades antes pouco violentas passassem, em pouco tempo, para os primeiros lugares em assassinatos?
Há um processo de desconcentração econômica, com o aparecimento de polos de crescimento no interior. Eles emergem com força e peso econômico, mas não têm quase a presença do Estado em serviços como a segurança pública. É atrativo para a população, para o investimento, mas a estrutura do aparelho do Estado continua praticamente à míngua. Também, em um determinado momento, capitais e regiões metropolitanas começam a receber investimentos para melhoria do aparelho de repressão e mais eficiência policial. Mas as regiões do interior, antes consideradas calmas, ficam desprotegidas. / LISANDRA PARAGUASSU
TENSÃO NO ORIENTE MEDIO
Vários países na Europa já tratam Kadafi como ex-líder
Suíça bloqueia contas do ditador e Grã-Bretanha e França já falam em processá-lo por crimes contra a humanidade
A Europa já trata Muamar Kadafi como ex-líder. Ontem, a Suíça, mesmo sem esperar a queda do ditador, bloqueou suas contas nos bancos do país. A França deixou claro que quer uma mudança de regime na Líbia e indica que pode levar Kadafi ao Tribunal Penal Internacional, enquanto a Grã-Bretanha alertou que prepara sanções políticas, financeiras e comerciais.
"Espero, de todo o coração, que Kadafi esteja vivendo seus últimos momentos como líder", afirmou o ministro de Defesa da França, Alain Juppé. Para ele, os ataques contra a população podem ser considerados "crimes contra a humanidade", o que poderia levar a um processo contra Kadafi. Tanto a França quanto a Grã-Bretanha já falam em um processo contra o ditador.
Juppé descartou ontem a possibilidade de uma intervenção militar por parte da Europa. Mas defendeu o estabelecimento de uma zona de exclusão aérea sobre a Líbia. A ideia dos EUA é a de que França e Itália, pela proximidade com a Líbia, coordenem e apliquem a zona de exclusão.
Para a França, o princípio da não ingerência em assuntos de outro Estado não deve ser aplicado no caso da Líbia. "Quando um governo não é capaz de proteger sua população, quando a agride, a comunidade internacional tem o dever de intervir", disse. Segundo ele, pelo menos mil mortos já teriam sido contabilizados na Líbia.
O chanceler britânico, William Hague, também indicou que Kadafi está com seus dias contados: "A situação está muito contra ele e a pressão aumentará muito nos próximos dias".
Ontem, o presidente americano, Barack Obama, falou por telefone com seu colega francês, Nicolas Sarkozy, e os premiês britânico, David Cameron, e italiano, Silvio Berlusconi, para discutir "uma série de opções" que eles estão considerando para responder à crise na Líbia.
Um sinal claro da reação da Europa foi a atitude tomada pela Suíça ontem que optou em congelar todas as contas do ditador líbio e da família dele, alegando que o bloqueio era uma forma de evitar que o dinheiro fosse desviado para atividades suspeitas, como a compra de armas. O dinheiro ficará bloqueado por três anos. Em casos parecidos na Tunísia e no Egito, as autoridades suíças esperaram até a queda dos ditadores para iniciar o processo de congelamento das contas, o que provocou críticas por parte de vítimas e de ONGs.
ONU vota hoje resolução sobre suspensão da Líbia
Jamil Chade - O Estado de S.Paulo
Apesar do apelo de Barack Obama para que a comunidade internacional atue com "voz única", a diplomacia mundial está dividida sobre o que fazer com Muamar Kadafi. Hoje, o Conselho dos Direitos Humanos da ONU se reúne em Genebra para votar uma resolução que propõe a suspensão da Líbia do órgão, algo inédito. Mas países islâmicos e Cuba rejeitam a ideia. Se a suspensão for aprovada, será enviada à Assembleia-geral da ONU, que tomará a decisão final. Ainda hoje, o Conselho de Segurança da ONU realiza uma reunião de emergência para discutir sobre a Líbia.
OPÇÕES DE RESPOSTA
Resolução - Pressionar por uma resolução mais forte no Conselho de Segurança da ONU, que poderia levar à imposição de sanções ou outras punições.
Suspensão - Apoiar a iniciativa mexicana para suspender a Líbia do Conselho de Direitos Humanos da ONU.
Sanções - Emitir ordem executiva incluindo sanções como restrições de visto e viagens e congelamento de bens.
Exportação - Suspender a licença de exportação da Líbia.
Exclusão aérea - Criar uma zona de exclusão aérea.
ENTREVISTA: ANTÔNIO PATRIOTA - MINISTRO DAS RELAÇÕES EXTERIORES DO BRASIL
'Condenar violência é condenar autoritários', diz Patriota
Chanceler diz que solidariedade com aspirações por democracia também é crítica as regimes fechados
Denise Chrispim Marin, correspondente
WASHINGTON - O ministro das Relações Exteriores do Brasil, Antônio Patriota, afirmou ao Estado ser possível a aplicação de sanções do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) contra interesses particulares do líder líbio, Muamar Kadafi. Conforme indicou, nenhuma retaliação foi proposta ao Conselho de Segurança por causa da preocupação dos países-membros com seus cidadãos na Líbia. "Sanções contra quem? Só se for contra Kadafi e seu círculo imediato de assessores", afirmou. Durante a entrevista, Patriota emitiu novos sinais sobre a agenda do governo de Dilma Rousseff para o Oriente Médio.
Nas rebeliões populares da Líbia, do Egito e da Tunísia, não houve condenação aberta aos regimes autoritários, mas à violência. Por que?
Essa mensagem está implícita. Quando um país diz que se solidariza com as aspirações dos manifestantes por maior participação política, por maior liberdade de expressão, a condenação está implícita.
No caso do Brasil, estava implícita?
Sem dúvida. Esses episódios provaram ser falsa a percepção de que, no mundo árabe, ou se cai no autoritarismo ou no extremismo islâmico da Al-Qaeda. Ficou claro no caso do Egito, uma nação que representa a metade da população do mundo árabe na qual setores muito expressivos da sociedade reivindicaram melhorias institucionais, econômicas e sociais com base na paz e no diálogo. Essa é uma mensagem significativa e transcendental. O mundo árabe não é o mundo da Al-Qaeda. Não precisamos falar dessa região apenas em termos de terrorismo. Acho que a Al-Qaeda foi uma das grandes derrotadas desses episódios.
Por quê?
Porque não verificou o conceito da Al-Qaeda de que países anteriormente alinhados ao Ocidente só poderiam evoluir por meio do extremismo.
A questão líbia terá evolução no Conselho de Segurança?
Eu não excluo a hipótese.
Até mesmo com a possível adoção de sanções?
Sanções contra quem? Só se for sanções contra Kadafi e seu círculo imediato de assessores. No momento, não se fala nisso.
Parece estranho os Estados Unidos não tocarem ainda em sanções?
Há a preocupação com os nacionais na Líbia. Até agora, não houve violência contra estrangeiros. É interessante que, em todos esses movimentos nos países árabes, não houve slogans contra o Ocidente.
Em 2003, em Trípoli, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva chamou Kadafi de "meu amigo, meu mestre" e iniciou uma relação mais próxima do Brasil com a Líbia. Como fica a relação bilateral após a condenação do Brasil à violência no país?
Há um alto grau de imprevisibilidade na situação na Líbia. Essa é também a percepção do conselheiro de Segurança Nacional da Casa Branca, Tom Donilon, e da secretária de Estado, Hillary Clinton. Embaixadores árabes nos Estados Unidos também comentaram comigo sobre a complexidade inerente ao caso líbio, o único a ser levado ao Conselho de Segurança. O comunicado negociado pelos 15 membros do Conselho de Segurança (dia 22) estava muito em linha com nossa posição de repúdio à violência contra civis, de conclamação à moderação e ao diálogo, de facilitação da saída de estrangeiros. Não poderia prever neste momento o que acontecerá na Líbia, que já foi suspensa da Liga Árabe. Há risco de fragmentação territorial, em função de diferentes tribos e grupos que atuam em Benghazi e em Trípoli, e mercenários.
Qual sua avaliação sobre esse dominó de rebeliões contra regimes autocráticos árabes?
Já tivemos esse mesmo desejo de evolução democrática, de maior oportunidade econômica, de liberdade de expressão e de soberania na escolha dos rumos da Nação. Só podemos nos solidarizar com movimentos do Egito, da Tunísia e da Líbia. Fala-se muito no modelo turco de democratização desses países, por causa do ingrediente islâmico. O Brasil também pode oferecer um modelo de conciliação entre democracia, crescimento com Justiça social e evolução das liberdades individuais.
Qual será a relação do governo Dilma Rousseff com o Irã?
Será uma relação voltada para o comércio, o investimento, o diálogo político. Em relação ao programa nuclear, defendemos que o Irã deve se ater exclusivamente aos fins pacíficos, com base em seus compromissos como o Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP).
Mas com direito ao enriquecimento de urânio a 20%?
Esse direito não é contrário ao TNP. O problema do Irã é a desconfiança em relação a seus compromissos internacionais. Temos de oferecer alternativas diplomáticas para superar esse impasse. O Acordo de Teerã (maio de 2010) foi uma alternativa para criar confiança ente interlocutores que mal dialogavam entre si. O Acordo de Teerã está sobre a mesa. Continuaremos dialogando, como fizemos em 2010, com os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança e a União Europeia.
O Brasil vai votar pela condenação do Irã no Conselho de Direitos Humanos?
Caberá à delegação do Brasil se pronunciar.
Qual sua opinião sobre o veto dos Estados Unidos à condenação dos assentamentos de Israel em territórios palestinos?
Foi uma votação muito eloquente, de 14 votos a favor dessa resolução contra apenas um. Toda a Europa votou junto. Os assentamentos impedem o progresso no processo de paz.
Diante do Conselho de Segurança, o Brasil sublinhou sua intenção de atuar no processo de paz entre israelenses e palestinos. De que forma?
Neste ano, os três países do Ibas (Índia, Brasil e África do Sul) estão representados no Conselho de Segurança, como membros não permanentes. Os três têm em comum as boas relações com o mundo árabe e Israel e participaram da Conferência de Annapolis (2006). No dia 11, o Ibas concordou em permanecer em coordenação estreita para apoiar o processo de paz. Há tempos a Rússia quer realizar uma Annapolis 2, mas não há consenso. Essa reunião seria muito desejável.
Empresas brasileiras resgatam funcionários
Pelo menos 128 cidadãos do País deixam a capital, Trípoli, em operação de resgate
Flávia Tavares - O Estado de S.Paulo
As empresas brasileiras que têm negócios na Líbia conseguiram retirar, em segurança, parte de seus funcionários e parentes ontem. Pelo menos 128 colaboradores brasileiros da Odebrecht, Petrobrás e Andrade Gutierrez deixaram a capital Trípoli. Os 148 funcionários e parentes da Queiroz Galvão também poderiam ser resgatados de Benghazi ainda ontem.
Alegando questões de segurança, as empresas não quiseram agendar entrevistas com seus funcionários e só forneceram detalhes dos itinerários de resgate quando eles já estavam fora da Líbia.
A operação de retirada dos trabalhadores da Andrade Gutierrez se deu, de acordo com nota da assessoria de imprensa da construtora, em quatro etapas. "Na primeira, os familiares (6 portugueses e 3 brasileiros); na segunda, 32 colaboradores (30 portugueses e 2 brasileiros); na terceira, 6 colaboradores (5 brasileiros e 1 argelino); e na última etapa - finalizada hoje (ontem) - mais 187 colaboradores (180 vietnamitas; 1 português; 4 brasileiros; 1 paquistanês e 1 argelino). O transporte foi realizado em voo charter, contratado pela Andrade Gutierrez, voos comerciais e um avião C-130 da Força Aérea Portuguesa."
A Odebrecht informou que um voo fretado chegou de Trípoli a Malta ontem pela manhã, com 466 pessoas. Entre elas, estavam todos os seus funcionários e familiares brasileiros, num total de 107. Foi neste voo também que quatro funcionários da Petrobrás e seus três familiares escaparam da Líbia, além de 332 trabalhadores da Odebrecht e seus familiares de 23 nacionalidades. Em nota, a construtora acrescentou que "em Malta, as pessoas estão sendo abrigadas em hotéis e a Odebrecht providenciará, em voos fretados e de carreira, a condução de todos aos seus países de origem."
Navio. O Ministério das Relações Exteriores do Brasil informou ontem que quase todos os brasileiros que estavam na Líbia já foram retirados, com exceção dos 148 que estão em Benghazi (em sua maioria funcionários da Queiroz Galvão), dos funcionários da embaixada brasileira e de alguns trabalhadores designados para permanecer no comando das operações.
Na quarta-feira, um navio saiu de Atenas, na Grécia, e se dirigiu a Líbia para resgatar o grupo de 148 brasileiros. De acordo com o Itamaraty, por volta das 18h de ontem, o navio já estava em Benghazi, onde a retirada de brasileiros por avião está inviabilizada pelos estragos na pista do aeroporto. Ainda não havia previsão de quando atracaria ou deixaria o país.
Cooperação. Depois de não receber autorização de pouso de voos fretados em Trípoli, os Estados Unidos mandaram, na quarta-feira, um navio para retirar estrangeiros da capital líbia, a maioria americanos. Por causa do mau tempo, a embarcação não pôde deixar o país. O porta-voz do Departamento de Estado, Philip Crowley, declarou que o navio, com 285 passageiros, deveria partir ainda ontem com direção a Malta.
Na quarta-feira, a secretária de Estado americana, Hillary Clinton, teria prometido ao chanceler Antonio Patriota, em Washington, que a embarcação americana em Trípoli poderia resgatar brasileiros também.
Voo fretado leva pessoal da Odebrecht para Malta
Marcelo Portela - O Estado de S.Paulo
Emmanuelle Quintana, mulher de Marcos - funcionário da Construtura Odebrecht retirado da Líbia e levado para Malta num avião fretado - disse ao Estado, em Belo Horizonte, que conseguiu conversar de manhã com o marido pelo telefone. Ele tinha a expectativa de chegar à capital mineira ainda ontem.
O analista de sistemas disse que estava bem e não houve problema para deixar a capital líbia, Trípoli.
Mas, segundo Emmanuelle, ainda não estava decidido como seria o regresso ao Brasil.
"Ele não sabia se o grupo (de 114 pessoas) iria de Malta para a Itália ou para Lisboa. Podia ser para Lisboa", afirmou, na esperança de que o marido partisse da capital portuguesa, que tem voo direto para Belo Horizonte.
Nos últimos dias, apesar de não ter sido confirmada a data da partida de Trípoli, Quintana havia sido orientado pela Odebrecht a ficar em casa e com as malas prontas.
Mas um tio do analista de sistemas, o também mineiro Victor Flecha, ainda não conseguiu deixar a Líbia. Ele é funcionário da construtora Queiroz Galvão e vive em Benghazi, no leste do país que está sob controle dos opositores do governo de Muamar Kadafi.
"A informação que o Marcos tinha era que os brasileiros que estão em Benghazi seriam retiradas de navio, mas não sabia quando", disse Emmanuelle.
A assessoria da Queiroz Galvão afirmou que a retirada de seus funcionários já está sendo providenciada.
Ontem, também chegou à capital mineira o engenheiro José Geraldo, funcionário da Andrade Gutierrez. Ao desembarcar no aeroporto de Cumbica, ele afirmou que não teve problema para deixar Trípoli. Por meio de sua assessoria, a Andrade Gutierrez informou que está finalizando a retirada de quatro brasileiros que ainda estão na Líbia.
VISÃO GLOBAL
As várias faces de Muamar Kadafi
Com o regime líbio sitiado, reaparece a imagem do monstro maligno, antes tolerado pelo Ocidente em nome de petrodólares
*Dirk Vandewalle, The New York Times - O Estado de S.Paulo
Duas imagens ilustram de modo bastante adequado o início e o encerramento das quatro décadas de governo do líder líbio, coronel Muamar Kadafi. A primeira é a foto tirada poucos dias depois do golpe de 1.º de setembro de 1969, que o levou ao poder: ela mostra um belo e esbelto jovem revolucionário, em uniforme militar, ajoelhado na areia do deserto para orar. A outra foi tirada há três dias: Kadafi com uma expressão de desafio, envolto em seu manto de beduíno, defendendo de maneira incoerente - enquanto o levante desencadeado pela prisão de um advogado pertencente ao movimento pelos direitos humanos em Benghazi se estendia no país - sua pretensa revolução, e prometendo lutar até a morte.
Entre as duas fotos transcorreram 42 anos de um regime de chumbo, e milhares de fotografias que mostram a transformação de um jovem agitador no promotor do terrorismo internacional; de um jovem governante ambicioso, que prometia restaurar a grandeza do nacionalismo árabe depois do assassinato do seu herói, o presidente Gamal Abdel Nasser do Egito, num personagem proscrito pela comunidade internacional; de um filósofo em potencial para o bufão cuja demagogia foi igualmente ridicularizada por amigos e inimigos.
Por fim, após anos de sanções impostas pelos EUA e por todos os outros países, mais velho, mas sempre combativo, Kadafi foi aparentemente reabilitado pelo Ocidente.
Depois da revolução de 1969, os líderes ocidentais acreditaram de início que o novo regime líbio seguiria a mesma linha do reino, com uma política favorável ao Ocidente. Entretanto, logo ficou evidente que Kadafi não era um líder árabe comum, que obedeceria às convenções do comportamento ou do decoro internacional.
Assim que chegou ao poder, sua mensagem não deixou dúvidas: ele definiu a si mesmo e à Líbia como o baluarte contra o que considerava a política predatória do Ocidente. A brutalidade do período colonial italiano - que durou de 1911 a 1943 e levou à morte talvez a metade da população da província oriental da Líbia - se tornaria para ele uma persistente obsessão. Os italianos haviam destruído o embrião das estruturas burocráticas e administrativas criadas antes da invasão, de maneira que a Líbia tinha poucos elementos para se tornar um Estado moderno. E a monarquia - liderada pelo rei Idris I, nada propenso a governar a Líbia unificada - mantivera durante quase 20 anos a situação deixada pelos italianos ao sair do país.
O que não estava claro no início da revolução de 1969 era até que ponto o caminho adotado por Kadafi se tornaria tortuoso. Movido pelos petrodólares, ele foi descendo para um mundo cada vez mais autossuficiente, voltado para si e para o endeusamento próprio, um sistema fechado, alimentado e reforçado pelo servilismo que sempre cerca os ditadores e não tolera a oposição.
No início dos anos 70, por meio da estatização das companhias petrolíferas do país, Kadafi conquistou uma dose saudável de legitimidade perante o povo, mas também uma crescente desconfiança por parte do Ocidente. Em meados dos anos 70, ele demonstrou sua crescente falta de perspectiva com a publicação do manifesto Livro Verde, uma reduzida coleção de balbucios incoerentes que apresentou como o guia ideológico da "revolução" da Líbia que, no seu entender, nunca acabaria.
Logo o conteúdo do Livro Verde se tornou uma fonte de slogans nacionais. "A casa pertence aos que moram nela", dizia um deles, obrigando os proprietários de várias habitações a abrir mão dos seus imóveis (ou a arranjar rapidamente casamentos para mantê-los na família". Outro reiterava que "a democracia é o aborto dos direitos de um indivíduo". Kadafi passou a ser apontado como o líder do guia, o oráculo de uma revolução não muito estável.
Reflexões. Entretanto, as reflexões filosóficas de Kadafi e suas ideias grandiosas para uma nova sociedade foram se chocando cada vez mais com o que se tornara o lado visivelmente mais negro do seu regime. Os líbios conscientizaram-se de que viviam um pesadelo "orwelliano" no qual até os protestos mais fracos podiam levar a desaparecimentos, a prisões prolongadas sem qualquer forma de reparação e à tortura. Famílias inteiras sofriam pelas supostas transgressões de um dos seus membros.
O próprio exílio não representava uma fuga do terror. Em uma campanha para a eliminação do que Kadafi definia como "cães vadios", armou esquadrões da morte que perseguiam os dissidentes até mesmo no exterior. Quando, em 1984, manifestantes líbios realizaram um protesto diante de sua embaixada em Londres, um policial que tentava manter a calma entre os manifestantes foi morto por uma bala disparada do interior da embaixada. O que levou o governo britânico a cortar as relações diplomáticas com o regime.
A tendência de Kadafi de zombar das convenções internacionais, e o envolvimento do governo, muito bem documentado, em incidentes terroristas provocou um prolongado confronto com o Ocidente e fez com que o líder líbio fosse marginalizado pelo Ocidente. O presidente Ronald Reagan o definiu com a famosa expressão, "o cachorro louco do Oriente Médio", e o conceito de Kadafi como pessoa irracional, determinado a destruir os interesses ocidentais a todo custo e por todos os métodos, tornou-se sua imagem consagrada em todo o mundo. O atentado contra o avião da Pan Am sobre Lockerbie, na Escócia, em 1988, no qual perderam a vida 270 pessoas, foi apenas a confirmação final de sua loucura e iniquidade.
Depois de Lockerbie, a Líbia mergulhou no isolamento e Kadafi gritava vitupérios em discursos cada vez mais apocalípticos. Ele atribuía a conspirações americanas ou sionistas - ou a uma quinta coluna na Líbia que trabalharia no interesse destas - qualquer pequeno revés sofrido por seu país.
Armado de enormes ambições, e de muito dinheiro, passou a atacar o Ocidente - cometendo novos atos de terrorismo, como o atentado na discoteca La Belle, na Alemanha, em 1986, no qual morreram dois soldados americanos, e tentou criar e comprar armas biológicas e tecnologia para armas nucleares. Também financiou deploráveis causas e movimentos de libertação em todo o mundo, desde pequenos grupos de oposição na África subsaariana até o Exército Republicano Irlandês (IRA). Ao mesmo tempo, era afetado pelas sanções econômicas e diplomáticas em todo o mundo.
Em dezembro de 2003, a Líbia finalmente concordou em abrir mão de todos seus estoques de armas químicas, biológicas e nucleares. A promessa coroou um longo processo de negociações de bastidores com a Grã-Bretanha e os Estados Unidos, e foi uma das condições que Kadafi cumpriu para acabar com as sanções. Isso assinalou o início de sua reabilitação na sociedade internacional.
O regime agora tentava apresentar Muamar Kadafi ao mundo como ele sempre se considerara: uma figura global de grande projeção, um pensador de grande visão, cujas ideias sobre democracia mereciam uma profunda contemplação intelectual. Entre estas ideias estava o conceito de "Isratina", um Estado unitário no qual coexistiriam Palestina e Israel.
Relevância. O governo líbio pagou uma empresa de consultoria internacional para criar um fórum destinado a reunir na Líbia renomados especialistas e personalidades para debater com o "líder da revolução" sobre a natureza da democracia. O comparecimento de importantes intelectuais e figuras públicas do Ocidente - dispostas a satisfazer os caprichos e as fantasias de um ditador por um punhado de petrodólares - alimentou em Kadafi a convicção de que o Livro Verde ainda era importante, e sua revolução obsoleta e sua própria estatura de líder mundial tinham enorme relevância.
O homem que outrora personificara o terrorismo tornara-se, assim, um precioso aliado na luta contra o terrorismo. Poderíamos conviver com suas pequenas manias e ocasionais discursos delirantes em troca de sua cooperação. Assim, ele forneceu informações sobre grupos islâmicos em seu país e, em pelo menos uma oportunidade, aceitou um preso terrorista para interrogatório. As companhias petrolíferas americanas, bem como outras empresas dos EUA, voltaram à Líbia. Kadafi fechara o círculo, ou pelo menos era o que muitos acreditavam.
Agora que o regime líbio - assim como os da Tunísia, do Egito, Iêmen e Bahrein - está sendo sitiado por um levante popular, voltou a aparecer a imagem de Kadafi como um monstro maligno que fará todo o possível para sobreviver. Centenas de civis foram mortos pelas forças de segurança e por mercenários contratados, enquanto as forças favoráveis a Kadafi tiveram de abandonar Benghazi e a maior parte da província oriental da Cirenaica.
Na segunda-feira, quando o líder foi à televisão empunhando seu Livro Verde, seu discurso virulento soou como incoerente, mas familiar. Os adversários, ele disse, não passam de "cães e insetos nojentos", que ele esmagaria e mataria.
Foram-se as frases floreadas sobre a teoria democrática. Estava de volta a realidade da supressão brutal. Entretanto, os terríveis acontecimentos da semana passada nos fazem lembrar de uma frase do Livro Verde, escrita com o perfeito sangue frio do coronel Muamar Kadafi: "Esta é a autêntica democracia, mas na realidade os fortes sempre dominam". / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA
*É PROFESSOR DE ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NA UNIVERSIDADE DE DARTMOUTH
ARGEL
Depois de 19 anos, Argélia suspende estado de emergência
Manifestações em Argel, porém, permanecem proibidas; governo anuncia pacote contra o desemprego
O governo da Argélia suspendeu ontem o estado de emergência em vigor no país há 19 anos. A medida era um pedido antigo da oposição ao presidente Abdelaziz Bouteflika e figurou entre as principais exigências dos manifestantes que promovem protestos e greves no país nas últimas semanas. A suspensão dos poderes especiais do Estado argelino, porém, não anulou a proibição a manifestações em Argel.
Segundo a nova legislação, protestos só serão aceitos se forem programados para ocorrer fora da capital argelina e aprovados pelo governo com três dias de antecedência. "O momento para autorizar marchas em Argel parece ainda não ter chegado", declarou o ministro do Interior do país, Dahou Ould Kabila.
A medida foi criticada pela oposição. "A suspensão do estado de emergência é positiva, mas não suficiente. Precisamos de uma abertura real para atividades políticas, sociais e de mídia, para que o povo possa experimentar a democracia", disse o ativista Mustafa Bouchachi, diretor da Liga Argelina pelos Direitos Humanos.
Para o sociólogo Nasser Djabbi, mesmo com a nova legislação, "não haverá mudança nas liberdades dos argelinos". "Aqui, podemos ter escrito as leis, mas elas não são respeitadas", afirmou Djabi.
"Antiterrorismo". Segundo a agência de notícias estatal APS, o presidente argelino explicou que "o estado de emergência era aplicado somente por causa da necessidade da luta antiterrorismo". Além de proibir protestos, a lei em vigor desde fevereiro de 1992 aumentava os poderes da polícia e dos governadores no país. A oposição denunciava que a norma servia de instrumento para a repressão política.
O estado de emergência foi imposto depois que insurgentes começaram a se organizar contra a anulação das primeiras eleições multipartidárias da Argélia, em 1992. Os militares alegaram ter evitado a vitória de um partido fundamentalista islâmico que acabou na ilegalidade. A violência que se seguiu resultou em cerca de 200 mil mortos. O gabinete argelino havia aprovado a nova legislação na terça-feira, a pedido do presidente.
O governo anunciou ainda um pacote contra o desemprego prevendo o repasse de US$ 1,38 bilhão para que bancos públicos do país financiem negócios. A redução de contribuições previdenciárias de funcionários para que as empresas possam contratar mais também foi anunciada, assim como a oferta de empréstimos a juros baixos para o setor agropecuário. / AP e REUTERS
WIKILEAKS
Londres aprova extradição de Assange
Tribunal britânico determina que fundador do WikiLeaks deverá enfrentar na Suécia as acusações de abuso sexual; advogados apelarão da decisão
Ravi Somaiya, The New York Times - O Estado de S.Paulo
Um tribunal londrino determinou ontem que Julian Assange, fundador do WikiLeaks, seja extraditado para a Suécia, onde enfrentará acusações de abuso sexual. Seus advogados têm sete dias para apelar da decisão e informaram imediatamente que pretendem fazê-lo.
Vestindo o mesmo terno azul usado nas audiências anteriores, Assange manteve-se impassível enquanto a decisão era lida. Ele se encontra em liberdade depois de pagar fiança. Na decisão, o juiz Howard Riddle disse que as alegações de duas mulheres correspondiam a crimes passíveis de extradição e o mandado solicitando o retorno de Assange à Suécia para interrogatório era válido.
O veredicto marca uma reviravolta nos três meses de batalha travados nos tribunais britânicos e na mídia contra aquilo que Assange, sua equipe de advogados e as celebridades que o apoiam classificam como campanha conspiratória para deter o WikiLeaks e seus esforços para denunciar segredos corporativos e de Estado.
O caso tramita nos tribunais em meio às repercussões da operação de maior destaque já levada a cabo pelo grupo - a divulgação de 250 mil documentos secretos da diplomacia americana que se tornaram a base de reportagens publicadas por organizações jornalísticas de todo o mundo, incluindo o New York Times.
Aqueles que apoiam o WikiLeaks - muitos dos quais afirmam que as acusações contra Assange não passam de uma vingança por causa da divulgação dos documentos secretos - reuniram-se diante dos tribunais durante seis audiências, entoando gritos de "Nós o amamos, Julian". Assange teve a fiança inicialmente negada e foi brevemente detido após se negar a atender ao pedido de um juiz que quis saber seu endereço.
Promotores suecos afirmaram que Assange, um australiano de 39 anos, precisa voltar a Estocolmo para enfrentar acusações feitas por duas mulheres que dizem ter sido sexualmente abusadas por ele em agosto. Pela austera legislação sueca contra crimes sexuais, ele enfrenta duas acusações de moléstia sexual, uma acusação de coerção ilegal e uma acusação de estupro. As acusadoras, voluntárias do WikiLeaks, disseram que seus encontros sexuais com Assange começaram consensualmente, mas acabaram em situações de coerção. Assange disse que as acusações são "mentiras fantásticas", e ele se referiu à Suécia como "a Arábia Saudita do feminismo".
O juiz Riddle disse ontem que se houve abusos na Suécia "estes devem ser examinados e julgados pelo sistema sueco de justiça". Assange também negou as acusações do governo sueco de que teria deixado o país em setembro para não ser obrigado a se entregar à polícia; Assange diz que deixou a Suécia com permissão para fazê-lo. E denunciou o vazamento de dois documentos da polícia escocesa que traziam detalhes gráficos das acusações.
Assange e seus advogados demonstraram sua intenção de levar a luta aos tribunais superiores britânicos, e até ao Tribunal Europeu de Direitos Humanos. As condições de sua fiança determinam que ele seja alvo de monitoramento eletrônico.
Durante a luta nos tribunais, muitos de seus colegas mais próximos abandonaram o WikiLeaks. Uma dúzia deles formou um site rival, chamado OpenLeaks. O Departamento de Justiça dos EUA declarou que sua conta do Twitter será usada como testemunho numa investigação que poderia levar a acusações de espionagem.
Em uma das entrevistas de Assange na Grã-Bretanha, ele se comparou ao pastor Martin Luther King Jr. Em discurso gravado e reproduzido este mês em comício realizado em Melbourne, Austrália, Assange comparou a luta do WikiLeaks à dos americanos negros pela igualdade de direitos na década de 50, à dos manifestantes que tentaram pôr fim à Guerra do Vietnã nos anos 60 e à das feministas e dos movimentos ambientalistas. "Para a geração da internet, este é nosso desafio e este é o momento de o enfrentarmos", disse.
Assange trabalha na redação de uma autobiografia, que ele afirmou valer US$ 1,7 milhão em direitos editoriais. "Não quero escrever este livro, mas preciso fazê-lo", disse em dezembro ao londrino Sunday Times, explicando que os custos do processo tinham ultrapassado a marca de US$ 300 mil. Assange disse a amigos na Grã-Bretanha ter medo de ser extraditado para os EUA se voltar para a Suécia, mas foi desmentido por um ex-amigo. "Ele tem muito medo é de ficar preso na Suécia", disse Daniel Domscheit-Berg, um dos fundadores do OpenLeaks. Na Suécia, Assange pode pegar até 4 anos de prisão.
PARA LEMBRAR
Australiano é acusado de crimes sexuais
Em agosto da 2010, pouco após ter anunciado que revelaria documentos secretos sobre a guerra no Iraque, Julian Assange foi acusado de crimes sexuais por duas suecas. A Justiça do país interpreta os atos pelos quais ele responde como tipos "leves" de estupro. No fim de novembro, a Interpol acatou o pedido de prisão internacional feito pelo Judiciário sueco, para que Assange se apresentasse a uma Corte do país. Assange nega as acusações, dizendo que elas são parte de um complô para desmoralizá-lo. Depois de ser preso em Londres, no início de dezembro, ele conseguiu liberdade sob fiança.
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