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sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

11 de fevereiro de 2011 - VALOR ECONOMICO


CAÇAS
Sem ingerência sobre caças ou aviação civil, Jobim perde poder

Raymundo Costa | De Brasília

Jobim está contrariado no governo: ministro agradou PT com convite a Genoino, mas não demoveu Dilma da decisão de confiar processo dos caças a Pimentel
Muito embora mantenha a agenda cheia para as próximas semanas, o ministro Nelson Jobim está contrariado no governo. Desde antes da posse da presidente Dilma Rousseff, o ministro acumula reveses dentro do governo, entre os quais o mais sério é a revisão do processo de compra dos caças da Força Aérea Brasileira (FAB), determinada pela presidente.
Além da revisão da compra dos caças, o ministro sente-se desconfortável com o noticiário sobre decisões com as quais concorda, mas que são transmitidas como se fossem derrotas do Ministério da Defesa. Este é o caso, por exemplo, da retirada da aviação civil da órbita do Ministério da Defesa, com a qual concorda, mas sobre a qual gostaria de ter participação mais efetiva.
Entre os amigos do ex-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) na área jurídica informa-se que Jobim pensou, inclusive, em abreviar sua permanência no governo. Ele pretendia ficar no máximo dois anos, tempo que julga necessário para consolidar o comando civil na Defesa e implementar a Estratégia Nacional de Defesa. Agora, analisaria a hipótese de sair neste semestre.
Fontes ligadas à Defesa disseram ao Valor, no entanto, que o ministro mantém o projeto original. Ontem, Jobim estava na Amazônia, no fim de semana vai à Argentina e há poucos dias teve reunião com o ministro Antonio Patriota (Relações Exteriores) para definir a agenda internacional da Defesa. Também está confirmada a posse, no fim de fevereiro, do ex-deputado José Genoino (PT-SP) na principal assessoria civil do Ministério da Defesa.
Com relação aos caças, essas fontes afirmam que houve apenas "um adiamento" da decisão. A compra de navios de superfície para a Marinha nem mesmo teria sido adiada, porque o processo ainda se encontra em fase de consultas com os fornecedores. Mas, ao mesmo tempo que aceita que o momento não é politicamente favorável ao anúncio de compra de armamentos, é certo que Jobim não concorda com o adiamento dos projetos sob o pretexto de ajuste fiscal: a compra dos caças terá financiamento internacional e o Brasil somente terá de fazer desembolsos a partir do fim de 2012.
A relação de Jobim com o Palácio do Planalto mudou com a posse de Dilma. A presidente demorou a receber o ministro em audiência, e quando decidiu revisar a compra de um lote de 36 caças para a FAB, ela pediu para o ministro Fernando Pimentel (Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior) ler o relatório preparado pelo Ministério da Defesa. Ficou patente que a presidente pensava rever o processo e ouvir novamente todos os envolvidos - como é do seu estilo.
A compra dos caças da FAB é um processo iniciado no primeiro mandato do governo tucano de Fernando Henrique Cardoso. A FAB sempre se manifestou favorável à aquisição do caça da fábrica sueca Saab, o Gripen, mas no governo de Luiz Inácio Lula da Silva o negócio evoluiu para uma parceria estratégica com a França. O então presidente, no 7 de Setembro de 2009, chegou a dizer que o caça francês Rafale seria o escolhido, embora fosse bem mais caro que os demais concorrentes (além do Gripen, o F-18 americano).
Na troca de governo, os americanos da Boeing (fabricante do F-18, o Super Hornet), que antes estavam isolados, conseguiram estabelecer bons contatos com o Palácio do Planalto e melhoraram sua proposta, que agora inclui a manufatura de peças da fuselagem de todos os F-18 negociados no mundo em uma fábrica no Brasil. Jobim, segundo interlocutores do ministro, é contrário ao reinício de todo o processo licitatório.
Jobim não tem com Dilma o mesmo relacionamento que tinha com Lula, mas ganhou a simpatia dos petistas ao levar o ex-deputado José Genoino para o Ministério da Defesa. Genoino será importante para fazer a interface do ministério com o Congresso, sobretudo quando a questão da tortura e dos desaparecidos entrar na agenda dos congressistas, com a instalação da Comissão da Verdade. O PMDB, partido do ministro, entregou Jobim à própria sorte. Mas se ele sair, vai dizer que o partido perdeu um ministério e quer ser compensado com outra Pasta.


OPINIÃO
Democracia sob o sol a pino

*Maria Cristina Fernandes

No papel do artista mambembe Lorde Cigano, da caravana Rolidei, José Wilker monta seu picadeiro no sertão e anuncia que realizaria o sonho de todos os brasileiros. Uma chuva de flocos de algodão cai sobre a maravilhada plateia enquanto Cigano declara: "Agora, como em todo país civilizado, o Brasil também tem neve".
A cena é de "Bye Bye Brasil", de Cacá Diegues. O filme é de 1979, ano em que o Brasil iniciava o último governo da ditadura com desarranjos que levavam parte dos militares e dos civis a acreditar que o vaticínio de Samuel Huntington, se comprovaria.
Conselheiro do governo Médici, o futuro autor de "O Choque das Civilizações" (1997), Huntington advertiu-o de que o relaxamento de controles provocaria uma explosão de demandas sobre as quais o regime não teria controle.
Venceu a tese da abertura gradual, mas a crise econômica que presidiria o governo João Figueiredo e as tensões que marcaram a transição para o governo Sarney deram, até a bomba do Riocentro, sobrevida aos partidários da linha dura.
A lógica ianque, que descria nas chances da democratização brasileira pela ausência de instituições tão desenvolvidas quanto as dos ricos, também influenciaria a visão tupiniquim de que a saída para fazer nevar passa pela cópia de suas instituições. Essa visão alimentou o debate político ao longo dos últimos 30 anos e, ainda hoje, a cada leva de iniciativas reformistas, volta ao asfalto em botas de couro sob o sol a pino.
Seus proponentes, adeptos do voto em lista, distrital, distritão ou bambalalão são movidos pelo desejo de reduzir a competição na política. Não é à toa que as propostas sempre apareçam depois de eleições. Os sobreviventes temem não ter uma nova oportunidade de sobreviver à arena eleitoral. A plateia adere por inércia e sob a ilusão de que um novo sistema eleitoral funcione com pega-ladrão e faça nevar.
Aos reformistas da hora somem-se os analistas, cada vez mais frequentes desde a crise financeira internacional, que levantam preocupações com a possibilidade de os países emergentes terem um peso maior na ordem mundial.
No Valor de ontem, Dani Rodrik, professor de Economia Política em Harvard, foi buscar em Huntington os fundamentos para seu argumento de que o crescimento econômico não apenas é insuficiente para a estabilidade política como pode multiplicar as demandas e provocar mudanças que chamou de devastadoras.
Em outro artigo no Valor (11/10/2010), Rodrik já demonstrara que seu foco vai além dos manifestantes da praça Tahir. Neste texto exibiu sua descrença na estabilidade de uma ordem global em que Brasil, China, Índia e África do Sul tenham maior preponderância. São países que, segundo argumentou, mostraram, até agora, pouco interesse em contribuir para a construção de regimes globais: "Se o centro de gravidade da economia mundial mudar substancialmente para o lado dos países em desenvolvimento, o processo não será suave - e possivelmente nem mesmo benigno".
Professora da USP e organizadora da conferência internacional que, na próxima semana, sob os auspícios da Associação Internacional de Ciência Política e sua congênere nacional, a ABCP, debaterá em São Paulo as mudanças nas relações entre os hemisférios Norte e Sul, Marta Arretche diz que essas análises movem-se como o sarrafo do salto em altura. Imprensa livre, eleições limpas e Judiciário independente já não bastam. Agora os movimentos sociais também têm que estar sob controle.
"Países em desenvolvimento foram condenados pela teoria à incapacidade crônica de incorporar social e politicamente seus cidadãos e agora estão desafiando esse postulado", diz Marta, citando Adam Przeworski, pioneiro na desconstrução da teoria de que a democracia só sobrevive sob a neve.
Há imperfeições em toda parte, diz, mas ninguém acredita que a democracia americana esteja em risco porque um juiz da Flórida indeferiu um pedido de recontagem de votos que deu vitória a George W. Bush sobre Al Gore. Tampouco há sinais de descontrole num país em que um jovem, insuflado à violência pelo ultrarreacionarismo do Tea Party, atira numa deputada do Partido Democrata que votou pela reforma da saúde. E, finalmente, não se manifestam dúvidas de que a governança mundial está segura sob a liderança de um país em que o medo do perigoso comunista Barack Obama inflacionou a venda de armas.
A xenofobia tem inspirado política de governos e a eleição de parlamentares em toda a Europa e, nem por isso, alardeia-se déficit democrático no continente. É o superávit de neve que parece equilibrar essa balança institucional.
Um dos convidados da conferência, Peter A. Gourevitch, da Universidade da Califórnia, não vê modelos a serem transplantados aos países em desenvolvimento. Otimista em relação ao esforço regulatório das finanças mundiais, Gourevitch diz que a economia americana recupera-se numa esfera marcada pela consolidação do multilateralismo.
Em artigo publicado no ano passado ("The Politics of Stock Market Development", Review of International Political Economy) Gourevitch analisou o desempenho das bolsas de valores de 82 países entre 1975 e 2004 e constatou que aqueles governados por coalizões de centro-esquerda promoveram políticas de transparência e proteção aos acionistas mais atraentes ao investidor do que aqueles presididos por alianças orientadas à direita. O artigo cita o Brasil governado pelo PT.
A numeralha de Gourevitch engrossa a percepção de que se a democracia sobreviveu num país sem neve ao longo dos últimos 26 anos é porque a maioria levou vantagem.

*Maria Cristina Fernandes é editora de Política. Escreve às sextas-feiras


AVIAÇÃO
British e Iberia começam integração pelo Brasil
Primeira etapa está em curso com unificação dos canais de venda

Alberto Komatsu | De São Paulo

O terceiro maior grupo aéreo da Europa e o sexto do mundo, o International Airlines Group (IAG), fusão entre a British Airlines e a Iberia, escolheu o Brasil para ser o primeiro país a promover a integração entre elas. No dia 21 de janeiro, as duas empresas formalizaram o nascimento da IAG, com valor de mercado de US$ 8,5 bilhões.
Diretor comercial da British no Brasil, José Antonio Coimbra, disse ao Valor que a primeira fase já está em curso. Até 1º de julho, British e Iberia vão integrar seus canais de venda de passagens. Segundo Coimbra, são cerca de 100 agências de turismo que venderão passagens das duas aéreas, com taxa única de remuneração.
Depois disso, será a vez de definir o organograma da operação brasileira. A tendência é a de estabelecer um único comando no país para as duas empresas. As duas únicas cidades que deverão manter estruturas separadas para cada companhia são Londres e Madri. Isso porque as duas marcas continuarão existindo.
A British tem 140 funcionários no Brasil, incluindo os da área administrativa e tripulação, já que todos os voos da empresa britânica contam com comissários brasileiros. A espanhola Iberia, por sua vez, tem em torno de 100 empregados.
"Para a Iberia, o Brasil é importante porque é o seu maior mercado fora da Espanha. Para a British, a importância está na complexidade da regulamentação e da legislação", afirma o principal executivo da British no Brasil. "Costumamos brincar que se a IAG der certo no Brasil, vai vingar em qualquer lugar do mundo", acrescenta Coimbra.
O primeiro sinal de que o Brasil seria o primeiro país a implementar a integração da IAG foi dado no ano passado. Coimbra conta que foi quando, sem fazer qualquer alarde, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) aprovou a troca de informações estratégicas entre as duas empresas no Brasil.
Outro passo que será dado para a implementação do IAG no Brasil é um acordo de compartilhamento de voos (code share) entre a British e a Iberia. O pedido será encaminhado à Agência Nacional de Aviação Civil (Anac).
Com a união, as duas empresas europeias passarão a ter 37 voos por semana no Brasil, a partir de julho. Será quando a Iberia passará a ter 27 frequências por semana, sendo 3 voos entre São Paulo e Barcelona. A empresa espanhola também opera voos diários de Madri para São Paulo e Rio de Janeiro.
A British tem atualmente 10 voos por semana, sendo um voo diário entre São Paulo e Londres. A empresa tem também três frequências semanais entre o Rio e Londres. Com 37 voos no Brasil, a IAG vai ultrapassar a Air France-KLM, que opera 35 frequências semanais no país.
"Há potencial para mais voos no Brasil, mas nada foi definido ainda", afirma Coimbra. Segundo ele, uma das possibilidades é a British aumentar o número de voos entre Londres e Rio. No fim de março, a companhia vai aumentar em 30% a oferta de assentos entre São Paulo e Londres, mas sem criar novos voos.
O diretor da British diz que isso será possível porque a rota inclui uma escala em Buenos Aires, que passará a ter voo direto para Londres. Com o fim dessa escala, a oferta aumenta porque não vai mais haver demanda de passageiros para a Argentina.
Coimbra reforça a estratégia traçada pela IAG desde o início, a de ser um grupo que não vai se limitar a duas empresas, conforme tem dito publicamente o presidente mundial da British, Willie Walsh. O diretor brasileiro lembra que a IAG tinha uma lista inicial de 40 potenciais integrantes. A relação atual, diz ele, foi reduzida para 12 parceiros.
A IAG foi indicada pela imprensa portuguesa como potencial participante do processo de privatização da TAP, que deverá ter início a partir de março. O governo de Portugal tem 100% das ações da companhia. A alemã Lufthansa e a Qatar Airways também estariam no páreo.


CURTAS
Tráfego da LAN

A LAN Airlines, em processo de fusão com a TAM, informou ontem aumento de 13,3% no transporte de passageiros em janeiro, em relação ao mesmo período do ano passado. De acordo com a empresa, a oferta de assentos teve expansão de 12,6% na mesma base de comparação. A taxa de ocupação dos aviões cresceu 0,5 ponto percentual, ao se situar em 82,7%. O tráfego internacional respondeu por 68% do fluxo total de passageiros no mês passado.


LEGISLAÇÃO
Fux decidirá sobre terreno de marinha

Arthur Rosa | De Brasília

O Supremo Tribunal Federal (STF) passou ontem por situação semelhante à enfrentada durante o julgamento da Lei da Ficha Limpa - Lei Complementar nº 135, de 2010 -, em outubro. Os ministros decidiram suspender a análise de uma ação direta de inconstitucionalidade (Adin) pela qual se discute as regras de citação de interessados na demarcação de terrenos de marinha e esperar a chegada do novo colega, ministro Luiz Fux, cujo voto decidirá a matéria.
O julgamento foi suspenso depois de quatro ministros votarem contra e cinco a favor da concessão de medida cautelar pleiteada pela Assembleia Legislativa de Pernambuco (AL-PE) em ação contra a nova redação dada pela Lei nº 11.418, de 2007, ao artigo 11 do Decreto-lei nº 9.760, de 1946. A norma autoriza o Secretaria do Patrimônio da União (SPU) a notificar apenas por edital interessados nos procedimentos de demarcação de terrenos de marinha. Com a falta de um sexto voto para definir a questão, a ministra Cármen Lúcia pediu para que se chamasse o colega Dias Tofolli ou se suspendesse a análise do caso. O presidente, ministro Cezar Peluso, interveio e lembrou que o colega estava ausente porque havia se declarado impedido.
Pelas regras da Lei nº 9.868, de 1999, que trata do julgamento de Adins, uma medida cautelar só pode ser concedida com os votos da maioria dos integrantes do Supremo, ou seja, seis dos seus onze ministros.
Na ação, a Assembleia Legislativa pernambucana argumenta que a nova redação dada pela Lei nº 11.418, de 2007, suprimiu a possibilidade de intimação pessoal de interessados conhecidos em procedimentos de demarcação de terrenos de marinha. O relator Ricardo Lewandowski votou pela não concessão da liminar. Ele entendeu que seria impossível chamar pessoalmente todos os envolvidos na fase inicial do processo e que o exercício do direito do contraditório e da ampla defesa se daria no segundo estágio da demarcação, ou seja, após a determinação da linha do preamar - posição do mar em maré alta. Seu voto foi seguido por Joaquim Barbosa, Cármen Lúcia e Ellen Gracie.
A divergência foi aberta pelo ministro Ayres Britto. Para ele, não se trata mais de demarcação, mas de "remarcação". Por isso, entendeu ser necessário intimar pessoalmente todos os interessados certos. Peluso lembrou que, em mais de 90% dos casos, a remarcação de áreas de marinha envolve propriedades privadas, conhecidas da SPU.


EU&FIM DE SEMANA
À MESA COM O VALOR – FREI BETO
Um frade com fome de ação

Por Maria Inês Nassif | De São Paulo

O dia 21 de janeiro amanheceu uma sexta-feira nublada. Foi um daqueles em que o céu caiu na cabeça dos paulistanos, no verão tardio de 2010 que só começou a acontecer em 2011. Entre dois temporais, o da manhã e o da tarde, Frei Betto e a repórter foram almoçar na Feijoada da Lana. Nos dois dias que separaram o convite do jornal para este "À Mesa com o Valor" de sua resposta, o irmão dominicano, escritor e jornalista Carlos Alberto Libânio Christo escolheu a dedo o restaurante. O estabelecimento serve a mais brasileira de todas as comidas, a feijoada, todos os dias. Lana Nowikow, a dona da feijoada, é uma jornalista, filha de imigrantes russos, que serve o seu famoso prato, antes acessível apenas aos amigos, num restaurante que forma filas imensas no fim de semana. Foi a última mulher de Sérgio de Souza, jornalista com quem Frei Betto trabalhou na revista "Realidade", nos anos 1960, e de cuja amizade desfrutou até o fim. Sérgio de Souza morreu em 2008. Lana continua amiga.
"O senhor ainda é gourmet?", pergunto, enquanto nos servimos do caldo de feijão, ao qual adicionamos generosas porções de cebola e cebolinha picadas, além da indispensável pimenta. Era a entrada. "Sou "gourmãe"", responde o dominicano, que, embora em sua profícua obra de escritor, que totaliza 51 livros, ostente 2 livros de culinária, não admite rivalizar com os dons da mãe, Maria Stela Libânio Christo, a papisa da comida mineira que escreveu "Fogão à Lenha", o livro que todo aficionado em culinária e nas tradições daquele Estado já leu, com prazer. Foi cozinheiro de cela, no período em que esteve preso por ligações com a ALN de Carlos Marighella (os dominicanos deram apoio operacional ao grupo), mas era comida para 40 presos, com os ingredientes de que dispunha. Era difícil cozinhar com arte, conta. Mas continua gostando de cozinhar, revela, durante o almoço.
Nas festas de fim de ano, costuma fazer cuscuz marroquino, uma de suas especialidades. No último, para a imensa família reunida: mãe, 7 irmãos, 10 sobrinhos e 30 sobrinhos-netos, dos quais 14 crianças pequenas. "Cuidado, senão você vai acabar pisando em algum bebê", brincou o irmão, enquanto Frei Betto desempenhava a função de cozinheiro do dia. A mãe tem hoje 92 anos, pouco cozinha, embora ainda anote umas receitas.
Frei Betto foi preso, em 1969, quando estava abrigado num seminário dominicano na cidade gaúcha de São Leopoldo, o Cristo Rei. Foi para lá em maio. Já sabia que estava sob a mira da polícia. Em novembro iria para a Alemanha cursar teologia. Tinha que aguentar até lá. Antes de embarcar, todavia, recebeu de Marighella a incumbência de passar foragidos pela fronteira. Quando a polícia estava atrás de Frei Betto, dois jornalistas tentaram contato com o religioso para avisá-lo de que ele era a bola da vez. Encontraram a senhora que seria o contato deles numa procissão. Ela cantava um hino religioso e, no mesmo tom da música, deu o recado: "O padre que vocês estão procurando já caiu". Chegaram tarde.
Apesar da opção religiosa de Frei Betto, seu pai cultivava um anticlericalismo visceral, daqueles que define que padre nenhum entra na sua casa. Diferentemente do filho, era conservador. "Ele era um juiz de extrema-direita, americanófilo e anticlerical", conta o frade. Depois que o filho foi preso, passou a ver a política com outros olhos. "Ele foi mudando a cabeça e terminou a vida, em 1992, apoiando a Teologia da Libertação", diz Frei Betto. Aproximou-se da religião porque mudou de posição política. "Uma das únicas vezes que saiu do Brasil foi para conhecer Fidel Castro."
Tornar-se dominicano, todavia, não foi um ato de rebeldia. A mãe, dona Stela, não apenas era católica, mas militava na Ação Católica, o movimento que originou a esquerda católica. Carlos Alberto militava na Juventude Estudantil Católica (JEC) e depois, estudante de jornalismo, na Juventude Universitária Católica (JUC), dois movimentos nos quais os dominicanos eram ativos. E, daí, aproveita para deixar claro: nunca foi padre. Apenas é irmão. Pode celebrar missa e matrimônio apenas por delegação do bispo, mas não pode ministrar outros sacramentos, como confissão, batismo ou crisma. Essa foi uma opção. "Acho que aí tem um pouco da influência do anticlericalismo do meu pai, mas eu não tenho jeito de lidar com uma paróquia. Minha vocação é outra. A Ordem dos Dominicanos é oficialmente conhecida como a Ordem dos Pregadores. Hoje seria a ordem dos comunicadores, da comunicação."
É curioso conversar com Frei Betto. Entre um e outro gole de limonada suíça, fala com a mesma desenvoltura de marxismo e da experiência mística vivida com a leitura das obras de Santa Teresa de Ávila, que o salvou de uma crise de fé, ainda no noviciado. O marxismo é, para ele, uma ferramenta, um método de análise importante. "Sempre me interessei muito pelo marxismo. Desde que iniciei minha militância no movimento estudantil, no início dos anos 60, em Belo Horizonte, atuei muito em aliança com o PCB contra os setores conservadores." A ligação entre fé e marxismo o aproximou da revolução sandinista, na Nicarágua, no fim dos anos 70, construída por uma aliança entre marxistas e católicos. Foi no aniversário do primeiro ano da revolução, em julho de 1980, que conheceu Fidel Castro. Foi a primeira de longas conversas - "os irmãos Castro jamais conseguem receber alguém por uma ou duas horas somente", diz Frei Betto. "Parece coisa de mineiro", observo. O religioso ri. Aceita a semelhança. "É, parece."
Nessa conversa inicial, que durou das 14 horas às 6 do dia seguinte, Frei Betto fez duas perguntas ao líder cubano. "Eu perguntei por que o governo e o Partido Comunista Cubano eram confessionais. Ele levou o maior susto. Disse: "Somos oficialmente ateus". E eu respondi: "Exatamente por isso são confessionais. Negar a religião é confessionalidade. Não existe nenhuma prova científica da existência de Deus, mas não existe também da não existência". Ele disse que eu tinha razão, que não havia pensado nisso. Anos depois, eles mudaram a Constituição e o Estado e o partido passaram a se declarar laicos", conta. A segunda observação foi sobre as relações do governo com a Igreja Católica, e Fidel reconheceu que elas não eram boas.
Em 1981, Frei Betto foi a Cuba como mediador de entendimentos entre o governo cubano e a igreja. Acredita que foi um trabalho bem-sucedido - a ponto de a igreja ter monitorado o processo de soltura dos presos políticos. Em 1975, o dominicano lançou o livro "Fidel e a Religião". Depois de Cuba, foi convidado também para mediar as relações entre igreja e Estado em países do Leste Europeu: Polônia, Rússia e Tcheco-Eslováquia. "Já era muito tarde, o socialismo já estava desmoronando", lamenta.
Vamos ao bufê. A feijoada está espalhada por panelas de barro com feijão e outras com carnes variadas. A laranja é cortada como em Minas: a casca é tirada de forma a machucar a fruta e retirar a película branca que a separa da polpa. Depois, a polpa é cortada em pedaços que obedecem ao tamanho do gomo. Frei Betto arruma a feijoada no prato com capricho: em separado, o feijão, duas grandes costelas de porco (das quais se tira pouca carne, mas a mais saborosa da feijoada), paio, a farofa e o montinho de couve. Vê, com pesar, o seu prato ser confiscado pelo fotógrafo para o registro que o leitor encontra nesta página. Para um gourmet, não deve ter sido agradável ver o prato esfriar sob flashes numa mesa ao lado do bufê. Ainda bem que é jornalista. Manteve a paciência.
De volta à varanda, onde nos acomodamos, o barulho intenso dos ônibus que passam na rua Aspicuelta agora se mistura com a forte chuva. Falamos mais alto, assim como as demais mesas ao nosso lado. Frei Betto conclui seu raciocínio sobre o cruzamento entre Deus e Marx. "Seria complicado conciliar as duas coisas se eu considerasse o marxismo uma religião, como muitos marxistas consideram. Mas eu considero como um método de análise. Assim como São Tomás de Aquino pôde embasar a sua teoria em Aristóteles, que era pagão, a Teologia da Libertação também pode articular com categorias marxistas."
Fugimos da chuva. Abrigados lá dentro, Frei Betto, eu, o fotógrafo e o motorista, pedimos a sobremesa. Frei Betto não conseguiu o frugal abacaxi que pediu. "Está muito azedo", desencorajou a garçonete. Um delicioso pudim de claras foi parar no meio da mesa, por culpa minha - um pedaço imenso, que precisou da ajuda dos demais para chegar ao fim.
Só então eu me sinto à vontade para matar um pouco da curiosidade que, acho, toda pessoa que não tem religião cultiva em relação a Frei Betto, o dominicano que respira política e sempre ganhou sua vida trabalhando em jornais e revistas, escrevendo livros e dando palestras: "O senhor não sentiu falta de uma vida "civil"?" Ele ri. Não devo ser a primeira pessoa a ter perguntado isso, porque a resposta está na ponta da língua: "Nunca tive saudades dos filhos que nunca tive. A religião me dá muita liberdade e eu gosto muito disso". E, entre risos, observa: "Eu conheço tão intimamente a vida conjugal dos outros que não sinto inveja". Tem vários amigos que deixaram a vida religiosa para casar e se arrependeram. Um deles, que não teve filhos, foi aceito na ordem novamente quando se separou, 20 anos depois.
A conversa acompanha o ritmo da chuva. Frei Betto conta sobre os tempos da "Realidade", a revista que foi o padrão de jornalismo dos anos 60, e da "Folha da Tarde", jornal do grupo "Folha de S. Paulo". Chegou a chefe de reportagem. Ele, o diretor da "Folha da Tarde", Jorge Miranda, e o jornalista Flávio Tavares eram inseparáveis, no jornalismo e na militância política. A revista "Veja" daquela época volta para a história quando ele repete um comentário que escreveu em um dos seus livros biográficos, o "Batismo de Sangue": todo "ponto" [encontro] que ia cobrir, a senha para encontrar a pessoa era a "Veja" debaixo do braço. Assim era com quase todo militante político. Em 1968, quando mais de mil estudantes foram fazer um encontro da UNE na pequena Ibiúna, calcula-se a quantidade de "Vejas" que foram necessárias para cobrir todos os pontos das pessoas que foram para lá de todo o Brasil.
Frei Betto nunca foi do PT, ao contrário do que muitos pensam; continua amigo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, embora tenha entrado no seu primeiro governo e não poupado críticas quando saiu, mas conta que tem um pacto de não falar na amizade. Ela está fora disso. E, apesar de todas as críticas - basicamente, a de que o governo substituiu o Fome Zero, que previa portas de saída do programa, pelo Bolsa Família, que é um programa compensatório de renda -, julga que o presidente Lula fez o melhor governo do período republicano. Falta ainda. Principalmente educação - "falta um Paulo Freire, falta um Anísio Teixeira". A questão ambiental também ficou para trás.
Falta também superar os anos de ditadura, afirma Frei Betto. Foram 21 anos que travaram a criação artística. A literatura não produz mais obras de arte. "Não houve uma revolução educacional depois da ditadura. Faltou reforma agrária, que poderia ter segurado população no campo e ter evitado a ocupação desordenada das cidades, responsável, por exemplo, pela catástrofe ocorrida na região serrana do Rio, que resultou em cerca de mil mortos."
Acaba o café e a chuva passa. De repente, Frei Betto se apressa. Esqueceu o guarda-chuva no carro. É a chance que tem de chegar seco ao convento dominicano, em Perdizes, onde mora. Despedimo-nos. Eu, lamentando a evidência de que, na hora de escrever, muita história teria que ficar de fora das páginas do jornal. A vida intensa de Frei Betto, política e religiosa, não cabe em um tabloide. E certamente não se esgota nos livros biográficos que colecionou ao longo da vida.


EGITO
Mubarak ignora pressão e fica no cargo
Ditador promete delegar mais poderes a seu vice e diz que Exército var fiscalizar processo de transição

Agências internacionais

O presidente do Egito, Hosni Mubarak, ignorou a pressão e os protestos de rua e se recusou a renunciar. Na TV, ele voltou a dizer que permanecerá no cargo até a eleição de um sucessor em setembro. A declaração contrariou especulações que circularam ao longo do dia de que ele finalmente deixaria o posto após 17 dias de grandes manifestações. Mubarak prometeu apenas que o Exército iria fiscalizar o processo de transição e delegou mais poderes para o vice-presidente, Omar Suleiman.
O discurso provocou frustração e ira nos manifestantes reunidos da Praça Tahrir, no centro do Cairo, que gritavam "Sai, sai, sai" e "abaixo Mubarak". Muitos balançavam seus sapatos no ar enquanto acompanhavam as palavras do presidente, numa típica manifestação árabe de desprezo.
Pelo Twitter, o Prêmio Nobel da Paz Mohamed ElBaradei, que se alinhou aos manifestantes pelo fim do regime de Mubarak e um dos possíveis nomes para a sucessão, disse em tom dramático: "O Egito vai explodir. O Exército precisa salvar o país agora".
Durante o dia, as Forças Armadas pareciam ter decidido que Mubarak não tinha mais condições de se manter no poder.
Em um comunicado, anunciaram que iriam atender a todas aspirações da população e que iriam assumir o controle da situação, o que foi entendido por muitos como uma mudança de rumo. Desde 1952, o país é governado por um regime militar e Mubarak vem contando até agora com o apoio das Forças Armadas.
"A questão essencial agora é o que acontecerá nas ruas e como os militares vão lidar com isso. Parece que o Exército está enviando sinais diferentes [dos de Mubarak]", disse depois do discurso, Brian Katulis, especialista em Oriente Médio do Centro para o Progresso Americano, em Washington, e conselheiro informal da Casa Branca.
A reação nos mercados tende a não ser positiva, na avaliação de Matt Smith, analista da Summit Energy. "Vamos pôr um prêmio no preço do petróleo porque as incertezas continuam no Egito. Muita gente esperava que Mubarak renunciasse, mas ele não fez isso."
Em seu pronunciamento, iniciado às 23h (hora local), Mubarak, de 82 anos - que está no poder desde 1981 - disse que "admite erros", lamentou as mortes de ocorridas nos últimos dias durante os protestos, mas reiterou o que já disseram num discurso anterior que permanecerá no cargo até que um novo presidente seja eleito em setembro.
Disse que o processo de transição política aberto por seu governo para tentar acalmar os manifestantes - o que inclui diálogo com a oposição - será mantido. Mubarak falou em transferir suas atribuições para Suleiman, sem dizer no entanto como isso será feito nem quando nem quais poderes serão, de fato, transferidos.
O presidente também fez críticas às pressões que têm sido feitas por governos estrangeiros para que ele acelere a transição política. "Não vamos aceitar ou ouvir nenhuma intervenção ou determinações estrangeiras."
O vice-presidente, Omar Suleiman, disse estar comprometido em atender às demandas do povo por meio do diálogo que, segundo ele, já começou. E em fazer todo o que for possível para garantir uma transferência pacífica de poderes. Recém-empossado, ele afirmou também que os egípcios não serão arrastados ao caos nem serão usados como instrumentos para sabotagem. Para ele, o Exército protegeu a "revolução da juventude".
Ontem, durante o dia, alto comando do Exército se reuniu para discutir a situação e a forma de lidar com os protestos. Mubarak, ex-comandante da Força Aérea, não tomou parte da reunião, o que deu alimentou ainda mais as especulações de que ele estava de saída ou que seria alvo de um golpe militar. Seu discurso no fim da noite sugeriu que o presidente ainda controla as Forças Armadas ou que pelo menos chegou a um acordo pontual com os militares para se sustentar no cargo.
Ontem também o diretor da CIA havia dito que eram "grandes as possibilidades" de que Mubarak renunciasse à noite. O governo de Barack Obama vem numa linha tênue durante a crise no Egito, um aliado importante dos EUA na região cujas forças militares recebem cerca de US$ 1,3 bilhão de ajuda de Washington anualmente.


ANÁLISE
Militares assumem papel mais ativo, mas entusiasmo com eles é cauteloso

Roula Khalaf | Financial Times

Desde que a mobilização da juventude lançou sua revolta contra o regime de Hosni Mubarak, tanto a população do Egito quanto seu governo sabem que o final do jogo será decidido pelo establishment militar.
O verdadeiro poder desde a revolta dos oficiais do Exército em 1952 que varreu a monarquia, os militares egípcios assumiram uma postura mais enfática em relação à crise egípcia na noite passada, com o que chamaram de declaração número 1.
Numa reviravolta dramática no levante que os egípcios estão chamando de Revolução de 25 de janeiro, um porta-voz das Forças Armadas apareceu na TV para declarar que os líderes militares se reuniram e continuarão se reunindo regularmente em apoio aos direitos legítimos do povo e para salvaguardar a estabilidade do país.
Não estava claro ontem se a primeira declaração foi um prelúdio para um golpe ou uma mensagem de tranquilização.
Os manifestantes, que adotaram a campanha "abrace um soldado" e insistiam ontem em seus slogans de que as Forças Armadas e o povo são uma coisa só, vêm pedindo que os militares tirem Mubarak do poder. Mas, para um movimento jovem idealista que vem lutando para garantir direitos democráticos e que apenas recentemente descobriu seu próprio poder para pressionar por mudanças, nem um golpe militar nem uma tomada parcial do controle pelas Forças Armadas parecem ser um resultado satisfatório.
As Forças Armadas, uma instituição opaca que vem operando nos bastidores, ganharam o respeito de muitos egípcios exatamente porque não interferem diretamente na política, deixando a condução do país para os presidentes que elas vêm escolhendo há décadas. Quando o Exército foi colocado nas ruas do Cairo e outras cidades por Mubarak, ex-comandante da Força Aérea, os manifestantes da praça Tahrir comemoraram.
Mas, entre os políticos no Cairo, o entusiasmo com o empenho do Exército é mais cauteloso, em meio a preocupações de que o comportamento amigável dos soldados rasos - que estão tão frustrados quanto o resto dos egípcios - não se estenderá aos líderes do país, que possuem enormes interesses no atual regime, incluindo a expansão dos militares para uma série de negócios.
Embora pouco se saiba sobre Sami Enan, o chefe do Estado Maior do Exército, que raramente aparece em público, os egípcios estão acostumados com o marechal de campo Hussein Tantawi, de 79 anos, que foi nomeado em 1991.
Ele é descrito em um telegrama diplomático dos EUA de 2008, que o WikiLeaks vazou na internet, como um oponente das reformas econômica e política, que ele vê como "corrosivas do poder do governo central".
Diplomatas americanos também informaram que Tantawi, que está velho e resiste a mudanças, apoia a posição de Mubarak de garantir a estabilidade do regime "até o fim do mandato".
Os telegramas apontavam para um pronunciamento em que o ministro da Defesa dizia que o papel dos militares é proteger a legitimidade constitucional e a estabilidade interna, sinalizando sua disposição de usar os militares para controlar a Irmandade Muçulmana, a oposição islâmica que vem tendo um papel importante na atual revolta.
Financiadas e treinadas pelos Estados Unidos, que vêm elogiando seu comedimento durante os protestos, as Forças Armadas vêm tentando balancear interesses aparentemente irreconciliáveis enquanto se vê entre sua lealdade a Mubarak e a necessidade de manter a confiança da população e o apoio de Washington.
No entanto, diplomatas ocidentais afirmam que sua prioridade esse tempo todo tem sido evitar um mergulho no caos.
Um militar de alta patente disse na noite passada que foi a antecipação das Forças Armadas aos protestos em todo o país e possivelmente até mesmo a tomada de prédios e instituições do governo que as levaram a adotar uma postura mais intervencionista. No entanto a natureza e a duração dessa intervenção só ficarão mais claras no futuro.


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