ENTREVISTA - MARIA DO SOCORRO PELAES DAMASCENO
Uma vitória que cruza a Amazônia
Presidente da Associação Vítimas de Escalpelamento supera trauma e evita acidente que vitimou 244 em seis anos
Ana Paula Siqueira
Maria do Socorro Pelaes Damasceno poderia ter se resignado com a condição que a vida lhe impôs. Nascida em Macapá, ela não se curvou à peça que o destino lhe pregou quando tinha apenas 7 anos. Durante um trajeto de barco que fazia com os pais, o cabelo dela se enroscou no eixo que transfere a força do motor à hélice da embarcação – que gira a 1.800 rotações por minuto – e fica no meio do barco, geralmente, sem proteção alguma. O resultado foi que ela perdeu todo o couro cabeludo, as orelhas, as sobrancelhas e parte da pele do rosto, o que deixou a visão do olho esquerdo comprometida. Foram cerca de dez cirurgias ao longo dos anos, e ela terá que passar por nova operação. Apesar disso, ela reuniu forças para fundar a Associação de Mulheres Ribeirinhas e Vítimas de Escalpelamento da Amazônia e, aos poucos, tem conseguido dar voz a um grupo geralmente esquecido. Aos 29 anos e mãe de quatro filhos, Maria do Socorro já conseguiu uma grande vitória: em 2010 e 2011 não foram registrados acidentes como o que a vitimou.
Por que o escalpelamento ainda é um drama para mulheres e crianças da região amazônica?
– Durante muito tempo, a gente não teve apoio do empresariado, dos gestores municipais e estaduais. Mudaram os gestores, o novo governador já chamou a gente para começar uma parceria boa. A Secretaria de Inclusão Social nos convocou para fazer a cobertura dos motores das embarcações. Acho que agora vai funcionar.
O que a senhora contabiliza como avanços obtidos com a Associação das Mulheres e Vítimas de Escalpelamento da Amazônia?
– Há dois anos não temos vítimasde escalpelamento no Amapá. A gente se fortalece para melhorar o cuidado. As vítimas estão recebendo indenizações e dez têm apoio do INSS. Temos duas vítimas de escalpelamento que se formaram em pedagogia graças a uma parceria com uma faculdade que concede bolsa de estudo integral para as vítimas. Em cinco anos da Associação, temos muito que agradecer. Está dando resultado, as meninas estão saindo de casa e se capacitando. A gente quer que o governo e os empresários incluam as vítimas, pois não entramos na cota dos deficientes físicos. É preciso dar oportunidades. Hoje estou preparada para qualquer emprego. Se derem essa oportunidade, não vão se arrepender.
Qual a maior dificuldade enfrentada pelas vítimas de escalpelamento?
– Ainda é com certeza a questão do emprego. Já reduziu bastante, mas o preconceito ainda continua.
Como é feito o trabalho de prevenção?
– No dia 6 de junho, começaremos uma campanha em parceria com a Marinha do Brasil e a Capitania dos Portos para a cobertura dos eixos dos motores. Uma associação de extrativistas do Pará está fazendo a medição dos eixos. Serão 400 coberturas colocadas gratuitamente. E estamos fazendo palestras no interior do Amapá e do Pará.
Medidas simples como prender os cabelos podem ajudar a reduzir os acidentes?
– Não dá para garantir. Estamos prevenindo as mulheres e as crianças a não passarem pela frente do motor, mesmo que seja para tirar água do barco. Especialistas afirmam que o custo para proteger o motor é baixo.
O que dizem os donos de barco?
– Eles estão colaborando porque há uma lei nacional que obriga os embarcadiços a cobrirem o eixo do motor. Estamos fazendo trabalhos de conscientização para esclarecer que a Marinha não vai prender ninguém, mesmo que esteja com o barco irregular. Essa campanha para cobrir os eixos dos motores é para conscientizar. Mas a aceitação está sendo muito boa. Depois de duas campanhas realizadas no ano passado, não foram registrados acidentes em 2010 e 2011.
Quantas pessoas foram vítimas de escalpelamento?
– Entre 2003 e 2009, foram 244 vítimas. Estamos fazendo um levantamento porque antes de 2003 os casos eram registrados como queimadura ou acidente.
Que tipo de acompanhamento as vítimas recebem?
– Até o ano passado, tínhamos acompanhamento de psicólogas no Centro de Atendimento à Mulher. Mas como mudou a gestão, mudaram as psicólogas. As mulheres, que estavam tão acostumadas com as outras psicólogas, não conseguem confiar nelas. Estamos tentando com as psicólogas antigas fazer um trabalho voluntário com a Associação.
É muito difícil se aproximar das vítimas?
– É sim. Muitas não aceitam bem a situação, sentem muita vergonha. Mas a gente vai conversando, e elas começam a nos acompanhar. Às vezes a gente chega numa vítima, e ela se surpreende porque pensava que só ela passou por isso.
Como surgiu a Associação das Mulheres Vítimas de Escalpelamento da Amazônia?
– A ideia da Associação surgiu no final de 2006. No começo era uma cooperativa.
Mas uma pessoa do movimento social me sugeriu a fazer uma associação. Hoje são 156 vítimas associadas.
Como é o trabalho da Associação?
– Hoje somos um grupo muito unido. Na última segunda-feira, começamos um curso de confecção de perucas. Fazemos de maneira artesanal, porque não temos dinheiro para comprar a máquina. Fazemos campanhas de doação de cabelos e temos um cabeleireiro que confecciona as perucas e as doa para nós. Atendemos também a vítimas de câncer. Oferecemos cursos de capacitação, como informática básica.
A senhora também é uma vítima de escalpelamento. Como aconteceu?
– Eu tinha 7 anos. Estava acompanhando meus pais e caí (no eixo do motor). Minha vida foi muito difícil. Eu tinha muita vergonha das pessoas e até de mim mesma. Quando acabei com essa vergonha, consegui resolver não só a minha vida, mas a de outras pessoas também. Só não consigo encarar as crianças. É muito difícil para mim. Sinto uma coisa esquisita, me incomoda quando elas me olham. É um trauma mesmo. Mas vou procurar tratamento para superar.
Como é a sua vida hoje?
– Hoje me dedico ao trabalho social, faço palestras e estou esperando uma oportunidade. Estudei pouco, apenas até a segunda série do ensino fundamental. Mas quero voltar a estudar e pretendo fazer duas faculdades: ciências sociais e direito. Agora, estou montando uma nova associação para cuidar das mulheres. Levamos o conhecimento da Lei Maria da Penha. Temos que dar apoio àquelas que não conhecem a lei ou têm medo de denunciar.
Por quantas cirurgias a senhora já passou?
– Fiz umas dez cirurgias. A recuperação é muito difícil. Preciso fazer uma nova operação, mas ainda estou pensando se vou fazer. O enxerto do lado esquerdo, onde tenho problema de visão, infeccionou e saiu. A recuperação é a pior parte. Tenho filhos pequenos e fico imaginando quantos dias terei que passar no hospital.
Como seus filhos lidam com a situação?
– Normalmente. Desde pequenos fico sem peruca na frente deles e eles pegam na minha cabeça para não terem medo.
E a sociedade? Como trata as vítimas de escalpelamento?
– A sociedade nos trata bem. Tem aquelas pessoas que ficam olhando assim... Mas a gente não tem mais tempo de ficar brigando por essas coisinhas de olhar feio ou estar apelidando. Quando o caso é mais grave, a gente toma as providencias cabíveis. No final do ano passado, uma vítima que desde o acidente, há oito anos, nunca saiu da depressão foi procurar um médico para o filho dela e foi agredida verbalmente por uma enfermeira.
Foi muito constrangedor, o hospital estava cheio. A enfermeira gritava que as vítimas de escalpelamento eram todas doidas e que ninguém deveria acreditar nelas. A vítima me ligou, pegou o nome da enfermeira e fomos para a delegacia. Já fomos numa audiência e ela pode ser condenada a prestar serviços comunitários ou pagar cestas básicas.
INFORME JB
Leandro Mazzini
Concurso
O Ministério da Defesa comunicou que os testes de gravidez não serão utilizados para eliminar candidatas a vagas nas Forças armadas. Os concursos que exigirem o teste deverão garantir às candidatas o direito de realizar testes de aptidão física depois da gestação.
MPF questiona
É que, desde 2009, o MPF investiga as exigências de teste de HIV e gravidez negativos e o estado civil de solteiro para participar de concursos nas Forças armadas.
Defesa
Para a Defesa, os pedidos são compatíveis com as peculiaridades da atividade militar. PF ainda analisa quais medidas podem ser tomadas em relação às outras exigências.
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