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segunda-feira, 23 de maio de 2011

22 de maio de 2011 - CORREIO BRAZILIENSE


VISÃO DO CORREIO
Devastação e proteção da Amazônia

No dia seguinte em que as naus do almirante luso fundearam na Baía de Porto Seguro, marco da descoberta do Brasil, se iniciou a devastação das riquezas florestais do país. Mas apenas no começo do século passado o governo brasileiro despertou para o problema. Passou a enfrentá-lo, todavia, com medidas anêmicas, tópicas, muito aquém de programas preservacionistas de índole estratégica. Ano após ano, a extração ilegal de madeiras da Amazônia Legal (que compreende os estados do Amazonas, do Pará, de Mato Grosso,  de Rondônia, Tocantins, Roraima e o oeste do Maranhão) seguiu em escalada incontrolável. Houve ano na década de 1980 em que a atividade predadora arrasou área correspondente ao território conjunto da Holanda e da Bélgica.
Porém é certo que, desde então, acentuaram-se, no âmbito governamental, medidas para combater as agressões ao meio ambiente na imensa região. De qualquer modo, tratava-se o desafio com políticas de dimensão secundária, longe de considerarem a integridade dos tratos amazônicos como questão de segurança nacional. Com a elevação do Ministério do Meio Ambiente, em 1993, ao topo da importância reservada às pastas mais expressivas, as derrubadas passaram a refluir, malgrado em modestos percentuais.
Assustado com o aumento, nos últimos nove meses, de 27% no curso da eliminação de árvores na Amazônia, o governo, por sugestão da ministra do Meio Ambiente, Izabella Teixeira, decidiu instituir gabinete de crise para agir e reverter a tendência calamitosa. Nada menos de 1.848 quilômetros quadrados de floresta desapareceram em arrastões com correntes acopladas a tratores pertencentes a criminosos (área correspondente à da cidade de São Paulo). Do gabinete, além da ministra Izabella, participarão os ministros José Eduardo Cardozo (Justiça), Nelson Jobim (Defesa) e Fernando Bezerra (Integração Nacional).
A entrada do Exército no conjunto dos contingentes (Polícia Civil, Polícia Federal e integrantes da Força Nacional de Segurança) convocados para a fiscalização e combate aos implicados na violência ambiental prenuncia atuação vigorosa e coerente com a colossal tarefa. É, pelo menos, a primeira operação orgânica e articulada de órgãos capazes de cumpri-la.
Não parece haver dúvida quanto ao acerto da iniciativa. Lamenta-se, apesar de tudo, que só agora os gestores do poder político se tenham dado conta de mobilização preventiva e repressiva adequada. Afinal, desde sempre se impôs como obrigação do Estado brasileiro guardar da cobiça aventureira e destruidora o bioma mais rico e mais importante do planeta, estendido em mais de 5,5 milhões de quilômetros quadrados (quase 60% do território nacional). Sem ignorar que o desmatamento ilegal resulta, também, de esquemas de corrupção e cumplicidade de agentes públicos.


SEGURANÇA PÚBLICA
Campanha desarmada
Falta fôlego à iniciativa do governo de fazer com que a população entregue armas de fogo. Em 15 dias de iniciativa, propaganda na tevê ainda é esperada e igrejas não foram credenciadas para receber os artefatos

Renata Mariz 

Lançada há duas semanas na esteira do massacre de Realengo, onde 12 crianças morreram baleadas por um atirador que adquiriu armas no mercado ilegal, a campanha do desarmamento funciona na base do improviso. Nos primeiros 15 dias de mobilização, foram recolhidos 1.097 armamentos no país, dos quais cerca de 500 só pela ONG Viva Rio, parceira institucional do governo federal na empreitada. Os números, passados pelo coordenador da entidade, Antonio Rangel, apontam uma média de 73 armas devolvidas pela população por dia. Caso esse ritmo se mantenha, a campanha chegará ao fim, previsto para 31 de dezembro, com 16.070 peças retiradas de circulação. Mesmo pagando por artefato recebido o valor máximo da indenização, que varia entre R$ 100 e R$ 300, o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, só conseguirá gastar R$ 5,1 milhões. O valor equivale a pouco mais de 50% dos R$ 10 milhões que ele reservou no orçamento da pasta para os ressarcimentos.
Além dos dados desanimadores, que o governo se nega a divulgar oficialmente, a campanha publicitária, com narração do ator Wagner Moura, ainda não foi ao ar. Até agora, apenas os postos da Polícia Federal, que desde 2008 nunca deixaram de atender o cidadão que quisesse entregar armas, estão recebendo os artefatos. Uma portaria publicada na última quarta-feira definiu os critérios para outras forças de segurança — como a Polícia Civil e as guardas municipais — se credenciarem. Quanto à participação de organizações não governamentais, igrejas, escolas e outros parceiros, apontados pelo ministro Cardozo como fundamentais na campanha do desarmamento, as regras sobre como poderão atuar só sairão em 15 dias. A Viva Rio é a única entidade com esse perfil que já recebe as armas, em virtude de ser parceira da campanha.
Rangel, coordenador da entidade, reconhece o atraso nas ações primordiais da mobilização. “Houve um descompasso entre o lançamento da campanha e essas providências práticas. Por isso mesmo, achamos que não valia a pena colocar a propaganda no ar enquanto o sistema de coleta das armas não estivesse bem estruturado”, afirma o especialista. Melina Risso, diretora do Instituto Sou da Paz, que também apoia a iniciativa, destaca o sistema de indenização em 24 horas — uma novidade da campanha deste ano em relação às realizadas anteriormente — como o principal motivo de atraso. “Quanto ao resto, não estamos começando do zero. Mas, no que diz respeito ao pagamento, sim. Então, é preciso capilarizar essa estrutura para, só depois, fazermos uma avaliação definitiva. Independentemente disso, achamos importante fazer o lançamento aproveitando o fato de Realengo como algo simbólico”, defende. O Ministério da Justiça foi procurado pela reportagem, mas não respondeu aos questionamentos.

Irrisório
Presidente da ONG Movimento Viva Brasil, Bené Barbosa é crítico contumaz da política de desarmamento. “Esse número irrisório prova o que já vínhamos falando há tempos, de que não há adesão popular por dois motivos. Primeiro porque quem tinha arma para entregar já o fez e segundo porque as pessoas estão cada vez mais inseguras”, afirma Barbosa. Segundo ele, a população anseia por outras ações de combate à violência, sobretudo na diminuição da impunidade. Melina, do Sou da Paz, considera “prematura” a ideia de que o estoque de armas em poder da população que se sensibiliza com uma campanha como a atual já foi esvaziado. “Na nossa concepção, cada arma que é retirada de circulação e destruída vale a pena. Temos que oferecer ao cidadão que quer se desfazer do objeto mecanismos legais, eficientes, de fácil acesso e seguros”, rebate a diretora da ONG paulista.
Para Mendonça Prado (DEM-SE), presidente da Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado da Câmara dos Deputados, campanhas de desarmamento são uma parte muito pequena das políticas de enfrentamento à violência. “Nosso Estatuto do Desarmamento é uma legislação quase perfeita, o problema é que muito pouco do que está lá é cumprido. Embora haja critérios rígidos para a permissão de ter arma, qualquer pessoa consegue uma hoje de forma ilegal”, diz o deputado. Ele defende reforço na segurança das fronteiras e o aumento de fiscalização. “Campanha de desarmamento não pode ser um marketing. Recolher cerca de mil armas em um país do tamanho do Brasil é ínfimo. A retirada de armas se faz em blitze, em patrulhas policiais, em revistas. Mas como fazer isso se chegamos a municípios com 30 mil habitantes onde há dois soldados?”, questiona.


HISTÓRIA
"Nós úmidos" do Itamaraty
Tese de doutorado de pernambucano, publicada em livro, discute o papel da diplomacia brasileira durante o regime militar e mostra o retrato de uma instituição "difícil de desatar"

Josué Nogueira 

Recife —  O nó que amarra segredos inconfessáveis da República brasileira tem as pontas bem seguras pelo Itamaraty. Os diplomatas são confidentes — e, por vezes, protagonistas — privilegiados da história. A atuação discreta e fiel dos profissionais das relações exteriores permitiu a esse segmento sobreviver incólume a percalços. Mesmo no período da ditadura, quando grande parte das instituições públicas sofreu desgaste, o órgão auxiliar da Presidência manteve a imagem de reserva moral do Estado. Justamente por ter sido a exceção à regra nos anos de chumbo, motiva questionamentos. Um deles evoluiu para estudo acadêmico e virou tese de doutorado em sociologia na Universidade Federal de Pernambuco.
O trabalho acaba de ser documentado em Habitus Diplomático: Um estudo do Itamaraty em tempos de regime militar (1964-1985), livro lançado em abril pela Editora Universitária. David do Nascimento Batista, o autor, define a atuação diplomática como um “nó úmido”. A analogia sublinha as dificuldades de desvendar o universo pesquisado — afinal, desatar nó úmido é tarefa inglória. Em cinco anos de trabalho, ele conseguiu um único depoimento entre as solicitações dirigidas a diplomatas e funcionários da administração do Ministério. Ainda assim, diz, a conversa não ofereceu elementos para que se entendesse de fato o que se passou naquele tempo. “Eles são mestres da palavra e da dissimulação honesta”, define.

Assepsia
De qualquer modo, a tese chegou a verdades sobre uma área pouco explorada pela academia. “O Itamaraty trabalha com disciplina. Eles (diplomatas) não têm nem raiva nem preconceito com nada que se passa e diz respeito a eles. Pelo menos oficialmente. Trata-se de uma habilidade extrema em passar uma imagem asséptica, quando, na verdade, integram um aparato que, para que se constitua como um aparato permanente, tem que trabalhar com segredo”, diz.
O trabalho de Batista, professor de direito e administração da Faculdade Marista de Pernambuco, conclui que o corpo diplomático se molda a partir de uma ética especial, diferente da ética convencional e ajustada ao campo que ele integra. Tal atitude é justificada pela lealdade irremovível ao Estado. “O patrão dele não é o governo, é uma estrutura que está acima dele. O patrão é o Estado. São coisas distintas. O governo apenas ocupa um determinado espaço do Estado por um tempo. Eles (os diplomatas) têm que ter zelo, cuidado e respeito acima de qualquer regime.”
Essa fidelidade é exemplificada com o apoio do Itamaraty à campanha dos militares para evitar que Dom Helder Câmara recebesse o Prêmio Nobel da Paz. Eles temiam que as denúncias que o então arcebispo de Olinda e Recife fazia ao regime ganhassem força. Esses e outros episódios ajudam a esclarecer como, mesmo que sintam “repugnância”, os diplomatas, segretários por ofício, se mantêm disponíveis às demandas do governo. Adaptados ao que Batista chama de “silêncio oportuno”.


Entrevista - David do Nascimento Batista

O que lhe instigou a pesquisar a postura do Itamaraty no governo militar?
O sociólogo trabalha com duas coisas fundamentais: com regra, aquilo que é linear, que se repete ao longo do tempo, e com exceção. A questão é que a exceção sempre denuncia a regra. A exceção seria o não aparecimento dos diplomatas como integrados à repressão. O Itamaraty é tido como a reserva moral do Estado. Isso me chamava a atenção. Essa coisa incólume seria a exceção. Estado, Congresso, Polícia Federal, Polícia Civil, Exército e Justiça se envolveram, mas o Itamaraty, para todos os efeitos, não. Conseguiu ficar no limbo. Uma coisa interessante é que o Itamaraty não aparecia. A não ser em momentos pontuais, mas que também se diluíam. Porque, entre a repressão efetiva do governo militar e a opinião isolada de um diplomata, essa coisa não era evidenciada.

Esse caráter de reserva moral atribui-se a quê?
O Itamaraty se diferencia de todo e qualquer setor ou agência do Estado. Trabalha com uma disciplina de tal ordem que, ao receber uma ordem, a cumpre sem discutir. Não tem nem raiva nem preconceito com nada que se passa e diz respeito a ele. Pelo menos oficialmente. É uma habilidade extrema de passar uma imagem asséptica, quando na verdade integra um aparato que, para se constituir como aparato permanente, tem que trabalhar com segredo. E, evidentemente, a origem sociológica do diplomata é essa. No início, ainda no momento de configuração do Estado, eles trabalhavam como segretários (especialistas em guardar segredo). Aqueles que atuavam permanentemente com o príncipe tinham de ter capacidade de atuar como o que se chama de silêncio oportuno.

Ainda que se ferissem princípios, ideologias, convicções pessoais, interesses político-partidários?
Ainda que ferisse a moral convencional.

Ainda que se discordasse de atos institucionais, atos violentos, perseguições, torturas, prisões?
Ainda que sentindo repugnância, atuavam com a estrutura. Diplomata não tem vontade própria. Evidentemente, ele pode ter condição de dizer não. Agora, até certo ponto.

Mas haveria espaço para alguém se rebelar? Qual seria o preço de uma crítica ao regime?
Ostracismo. Ele seria congelado. A carreira viraria emprego. Os melhores postos, obviamente, estariam fechados para ele.

As ações condenáveis do regime passavam em que nível pelo Itamaraty?
O Itamaraty tinha total consciência das ações, do ponto de vista documental e investigativo. Isso também integrava o papel das relações no exterior. O exterior recebeu exilados políticos e, consequentemente, diplomatas.


Eles tinham o papel de vender para outros países uma imagem fabricada do Brasil diante de uma realidade de opressão, tortura e morte?
Existia uma figura dentro do Itamaraty que na época ainda era embaixador nos EUA, Gibson Barbosa (depois chegou a chanceler). No exterior, ele se empenhava em entrar em contato com os proprietários do Washington Post para mudar a visão que eles tinham do país. O que chama a atenção é o seguinte: Gibson Barbosa era embaixador do Brasil nos EUA nesse período mais duro da ditadura, em 1968, e havia sido chefe de gabinete de Santiago Dantas, que era o chanceler de João Goulart. Parece estranho, mas de estranho não tem nada. Essa é a versatilidade do diplomata. Não tem preconceito. O patrão dele não é o governo, é uma estrutura acima dele. É o Estado. O governo apenas ocupa determinado espaço do Estado por um tempo. Eles (os diplomatas) têm que ter zelo, cuidado, respeito acima de qualquer regime.

O país perde em algum sentido pelo fato de o corpo diplomático guardar fidelidade máxima ao
Estado, ainda que esse Estado cometa erros?
 A natureza intrínseca do Estado é essa. O Estado é o mais frio de todos os monstros frios.

O senhor aponta na tese que a “verdade plástica e opaca do Itamaraty é tragicamente necessária”. Isso resume bem o papel dos diplomatas?
Todo Estado precisa de aparato de segurança. Não há outra forma de agir para o Itamaraty. Se se posicionasse contra, seria limado. Perderia o sentido. Passaria pelo que o Supremo passou: duas depurações. Você limpa uma vez, não está limpo o suficiente, limpa de novo. No capítulo em que falo da relação entre campo, estrutura e agente, isso fica claro. O sujeito perde acesso a  determinada estrutura e está consciente disso. Agora, isso cabe a diplomatas, padres, cardeais, jornalistas, juristas.

O senhor compara a atuação do Itamaraty no governo militar a um nó úmido, difícil de desatar.
É difícil de ser desamarrado. Quando peguei o tema para estudar, tive extremo cuidado. Essa entrevista, por exemplo, é outro momento delicado porque há perguntas a que você tem que dar a resposta efetiva, mas as palavras são difíceis de serem encontradas. Por isso usei a expressão nó úmido. Um nó úmido, quando você tenta desatar, quase sempre fere o corpo. Nesse caso, não se consegue desatar. É uma condição intrínseca daquele campo.

Essa fidelidade do Itamaraty ao Estado levou diplomatas a reforçarem o boicote a Dom Helder nas indicações que ele teve para o Prêmio Nobel da Paz. Como isso se deu?
 Enquanto, na direção do Prêmio Nobel, alguém lembrar o esforço da ditadura para não aceitar a indicação de um brasileiro para integrar o rol do prêmio, o Brasil jamais ganhará. Os militares fizeram de tudo, com o Itamaraty, para que não fosse concedido a Dom Helder o Prêmio Nobel. Eles temiam que com isso Dom Helder tivesse aval para recrudescer as críticas contra o regime. O Itamaraty endossou o boicote do começo ao fim. Era o canal fundamental entre o Estado brasileiro e os escandinavos. Fez essa enorme pressão e teve resultado positivo para a ditadura.
(JN)

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